domingo, 6 de maio de 2018

Tudo que move é sagrado


Ríamos como se a vida fosse isso, apenas riso e expectativa. No pulso, tatuagens falsas com as mesmas palavras. E usávamos camisetas idênticas, e brindávamos com nossas tacinhas cor-de-rosa. 8 meninas. Tudo diversão pura. O tempo tinha parado só para que a gente se divertisse.
Talvez o leitor pense que se trata de uma lembrança da minha adolescência, mas não: foi uma despedida de solteira de que participei há menos de um mês. Com amigas que conheço há muito tempo, não vou dizer quantos anos para que ninguém questione o “meninas” do parágrafo anterior. Mas de fato éramos apenas meninas circulando pelas ruas de São Paulo em uma limusine, e depois a pé pelos bares da Vila Madalena, bebendo e rindo só porque era maravilhoso estarmos juntas depois de tanto tempo, e também maravilhoso celebrar um amor que se revelou depois de tanto tempo, enfim, o tempo, esse tal devorador, não tinha nos devorado.

E então comecei a pensar (eu que não perco esse vício terrível) na beleza dos rituais. São eles que nos salvam da goela implacável do tempo. Lembro-me de uma passagem tão linda de Rosa, em “Festa de Manuelzão”: o protagonista, já velho, resolve dar uma festa, a primeira de sua vida, porqueu queria marcar um dia no corrido do tempo. É assim que o vencemos: marcando dias que a Memória, essa poderosa deusa, impede que o tempo leve.
O tempo não vai levar embora esses dias em que celebramos o amor de duas pessoas que se conheceram despretensiosamente em seu primeiro emprego. E que seguiram caminhos diferentes, namoraram outras pessoas, um se casou, a outra teve um filho, ambos se formaram e construíram suas carreiras, e estavam assim vivendo suas vidas alheios um ao outro até que se encontraram novamente. Um divórcio. Eles se encontraram como advogada e cliente que já se conheciam. E de forma inesperada se olharam de forma diferente, e se conheceram pela primeira vez novamente. Por que a vida, este rio, é nunca mais sendo a mesma. Então eles não eram mais aqueles de tantos anos atrás, e esses novos eles mesmos se encantaram e se apaixonaram e resolveram se casar.
Coisa mais linda é a gente ver como não só a arte imita a vida, mas esta quem se esforça para imitar aquela. E em cada ritual percebo como olhamos nossa vida como uma narrativa. Construímos as metáforas. Os símbolos. Colocamos verossimilhança na vida – essa coisa feroz e sem coerência. Neste casamento, não podia ser diferente: o pedido foi feito em forma de um pequeno filme exibido em um cinema. Os votos foram escritos e declarados pelos noivos em narrativas repletas de emoção e poesia. Na cerimônia, um dos padrinhos fez a vez de sacerdote, com uma narração hilária e ao mesmo tempo comovente daquele relacionamento, declarando falar “sem poder nenhum, investido por nenhuma instituição”, que ele não era padre, nem pastor, nem nada relacionado a Igreja nenhuma.
Porém, o que todos sabemos é que aquela cerimônia não religiosa estava repleta do sagrado. Porque o encontro com tantos amigos de longa data, com quem compartilhamos tantas descobertas, o começo de nossas carreiras e de nossas identidades profissionais – só podia ser sagrado. Porque aqueles votos de amor ditos em uma noite quente em pleno outono, de céu tão límpido e uma lua cheia glamourosa, só podia ser sagrado. Porque movia nossas almas e corações. E como já disse o poeta, tudo que move é sagrado.

domingo, 1 de abril de 2018

Páscoa


Uma das coisas mais bonitas da minha infância era o domingo de Páscoa. Na minha memória, a manhã era sempre fria e de céu azul. Acordávamos de manhã para a missa e não queríamos sair das cobertas macias. Mas as mãos rudes da minha avó, rudes do trabalho, de socar arroz no pilão, queimar o dedo nos tachos de doce, bater roupas nas pedras durante décadas, nos chamava para os deveres cristãos. Deveres que para mim eram deleites.

Venho de uma família cristã e mineira, para quem a Semana Santa era algo muito importante. Mais que isso, solene, cheia de um lamento misturado ao esplendor. Na procissão da terça-feira, os homens levavam Jesus, que encontrava Nossa Senhora das Dores, levada pelas mulheres – a mãe, dilacerada pela dor, despedia-se do filho. Na quinta-feira, depois do lava-pés, Jesus se dava a comer na última ceia, despedia-se do mundo, mas dizia nunca deixá-lo. Aquilo impressionava meus ouvidos infantis: “Comei minha carne, bebei do meu sangue”, e hoje ainda maravilha meus pensamentos: um Deus-alimento. E depois a missa do sábado, a fogueira a arder na frente da igreja; a bênção do fogo e da água, as promessas da renovação. E finalmente, no domingo, Jesus ressuscitava, vencia a morte, tudo era esperança! O almoço especial do domingo confirmava essa verdade, assim como o único ovo de chocolate, dividido entre os 6 membros da família, mais alguma visita ou vizinho que parara ali para almoçar, porque sentiu da calçada o cheiro bom do feijão da D. Helena, minha mãe.

Eu contemplo essas lembranças como se fossem um quadro, uma fotografia de família daquelas que a gente pendura na parede. Tenho saudade dessa fé que me pegava nos braços e me balançava. Agora, os gestos de esperança me parecem mais raros. Mas de vez em quando a gente percebe uma ponta de asa atrás da porta e se pergunta se seria um anjo.

Hoje fui almoçar na casa da minha sogra, D. Lázara. Há pouco mais de um mês, meu sogro faleceu e esta foi a primeira data festiva sem sua presença. Em sua juventude, Seu Belmiro era rezador na comunidade rural de Ivaiporã, no Paraná: encomendava corpos, rezava em enterros, novenas de Páscoa e Natal, benzia crianças doentes e com quebranto, e ainda tocava sanfona nos bailes. Como diz D. Lázara, um homem popular.

Os filhos, netos, bisnetos e tataraneta de Seu Belmiro estavam lá hoje, para celebrar a Páscoa comendo a tradicional carne assada com maionese, arroz, feijão, macarrão, farofa e tudo o mais que se tem direito (por que na mesa dos Topan não tem miséria, graças a Deus, como dizia meu finado sogro). Minha sogra estava nostálgica, contemplando a comilança geral e falando de seu Belmiro a cada 5 minutos.

Não, não havia ovos de chocolate nem coelhinhos da Páscoa. Mas houve um momento em que alguns dos netos entraram pelo portão com uma grande caixa embrulhada para presente:

- Vó, é uma surpresa para você!

Ela ficou de pé, apoiou a caixa em uma cadeira e rasgou o papel rapidamente, como qualquer criança. E seus olhos brilharam:

- É uma boneca, uma boneca! – ela ria enquanto chorava e tirava da caixa o bebê-boneca, e o aconchegava em seu peito. – Eu sempre adorei bonecas e a única que eu tinha quebrou.

Eu vi os olhos alegres daquela criança de quase 80 anos. As de 8 anos, em volta, olhavam a caixa recém-aberta, perguntando-se se não haveria mais presentes. Olhos de esperança, de expectativa. A mesa e seu almoço especial. Sim, era a Páscoa da minha infância novamente...