terça-feira, 26 de julho de 2016

Vozes de retratos

Quando eu era criança, não ouvia falar do dia dos avós. Tenho a impressão que ser avô ou avó hoje em dia tem outro estatuto. Contraditoriamente me parece algo mais divertido ou mais árduo: no primeiro caso, para aqueles que, perdida a susidez do ser avô ou avó, podem se divertir com seus netos, brincar com eles; no segundo caso, perdida a responsabilidade de muitos pais, estes avós se tornam pais de seus netos, educando e até provendo essas crianças. Às vezes também me pergunto se não é uma sacada de marketing para criar mais um "dia de..." e vender alguma coisa.
Mas o tal "dia de..." me fez pensar nos meus avós, já falecidos. Hoje de manhã, eu olhei o retrato da velha Júlia que fica na minha sala, e tive aquela conversa silenciosa que travamos quase todos os dias. Júlia era também minha mãe, ela morava conosco quando eu era criança. Eu contemplo o retrato dos meus avós maternos, e sinto como se Júlia me olhasse. Às vezes é um olhar de consolo, às vezes de reprovação quando reclamo da minha vida fácil (perto das grandes dificuldades que ela teve que enfrentar). Ao seu lado está o meu avô, seu Zé Mandioca. Era assim conhecido porque sua família habitava um grande mandiocal. Provavelmente, se perguntassem por ali pelo sr. José Francisco de Assis, ninguém saberia de quem se tratava. Mas o Zé Mandioca todos conheciam. Com ele converso menos. A verdade é que ele e a velha Júlia já eram separados quando nasci. E ela não fazia nenhuma questão de esconder o porquê: não bastasse o adultério (seu Zé Mandioca era fogo!!!), a falta de diligência no trabalho e de controle com o dinheiro criavam muitos conflitos. O engraçado é que depois de décadas de separação, de vez em quando ele visitava minha avó com esperanças de reconciliação. Que eram rapidamente destruídas pelo comportamento reativo da D. Júlia. Mesmo assim, ele ficava lá em casa por uns dias, caminhando no quintal com as mãos para trás, como era seu hábito, implicando com nossos passeios de bicicleta (que minha mãe pacientemente explicava que não eram perigosos, como ele insistia)...
Meu avô paterno foi mais presente na minha infância, o vô Deco. Infelizmente, a mãe do meu pai faleceu antes de eu nascer, a vó Nalva. Seu Deco conservou sua foto na parede por toda a vida e jamais se casou novamente. Uma história novelesca envolve o início deste casal: quando jovens, meu bisavô, pai de Nalva, era contra o casamento. Astutamente, Deco e Nalva fizeram um plano: ele iria "roubar a moça", ou seja, forjar um rapto, para que eles fossem "forçados" a se casar. A regra era clara: roubou a moça, tem que casar. Nalva, como mocinha honesta, pediu abrigo na casa de uma jovem tia que apoiava o romance. No dia seguinte, sem saberem que os jovens tinham passado a noite na casa da tal tia e que Nalva não tinha perdido nenhum minúsculo pedaço de seu corpo e pureza, obrigaram Deco e Nalva ao casamento. Tudo o que eles queriam.
Mas nem tudo foi romantismo na vida de Deco e Nalva: 14 filhos, 10 vingaram na vida pobre da roça. Nalva morreu antes dos 50 anos, era hipertensa e foi pega por um boi bravo no pasto. Qual a exata causa mortis nunca souberam me explicar bem. Deco ficou viúvo por mais de 30 anos. Morava em uma casa de fundo em Caçapava, seu cantinho ideal. No fim da vida, já debilitado, hesitou muito em morar com os filhos: adorava seu cantinho. Sempre que chegávamos lá, ele fazia café para nós, com um bom queijinho minas e às vezes, uma "coiada de doce". Gostava também de comer queijo minas com banana nanica.
Deco gostava muito de caminhar e não tinha a menor paciência para esperar ônibus. Aos domingos, ia a pé ao mercadão; às vezes, no caminho de volta, parava em nossa casa e ficava para o almoço. No Dia dos Pais, o churrasco no quintal do vô Deco era sagrado. Toda a família reunida, a carne na churrasqueira improvisada, a maionese da tia Rê, aquela primaiada brincando, os tios se jogando na cerveja e sempre no fim da festa os bêbados começavam a chorar de saudades da vó Nalva. Ô tempo bom, dá uma saudade de doer.
Foi o vô Deco que me ensinou a perder medo de velório e enterro. Um dia ele me olhou no olho e falou: "Fia, não precisa ter medo de gente morta. Eu tenho medo é dos vivos". Sábio vô Deco! Morreu do jeito que desejava: em sua casa, deitado em sua cama, com minha tia Cida, que colocou uma vela em sua mão e rezou com ele, como ele  tinha expressado ser seu desejo na hora da morte. Vida e morte, no fim das contas, lhes foram generosas.
Hoje só escuto as vozes dos meus avós quando olho fotos que tenho deles, que me trazem tantas lembranças boas. Não me mimavam, não me davam presentes... Mas me davam algo melhor: exemplos de coragem, força, resiliência. Eu me sinto muito afortunada por ter convivido com eles, e da memória ainda me permitir ouvir suas vozes quando contemplo seus retratos.

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