domingo, 31 de julho de 2016

A ignorância ilustrada

Li nesta semana uma reportagem lamentável, o que não é surpreendente, neste contexto em que, cada manhã, tenho medo do que vou ler nos jornais. "Médico debocha de paciente na internet", era o título da reportagem do portal G1 Campinas e região. A reportagem relatava que um médico, Guilherme Capel, que atendera no Hospital Santa Rosa de Lima, em Serra Negra, um paciente com pneumonia, teria postado nas redes sociais uma foto de um receituário do hospital com os dizeres "Não existe peleumonia nem raôxis". Obviamente, ele recebeu muitas curtidas e comentários de aprovação. Novamente, nada de novo sob o sol. O que talvez seja novidade, e creio que o jovem médico não esperasse, era ser reconhecido pelo paciente que atendeu, o qual, sentindo-se ofendido, compartilhou a foto com reprovação e fez com que o hospital tomasse providências contra o desrespeito, demitindo o médico e as enfermeiras que também participaram do deboche virtual. Surpreendido, o médico fez algo pouco surpreendente: procurou a imprensa para se retratar. Pediu desculpas ao paciente, disse que não quis ofender ninguém. É que ele já tinha atendido 100 pacientes naquele dia e estava apenas fazendo uma brincadeirinha para aliviar o stress. Mas que debochar de um paciente não era do seu caráter, da sua crença.
Ah, que bom que ele explicou, não é, minha gente? E, para meu pesar, a maioria das pessoas pensa assim. Lendo os comentários que seguiram as reportagens, vi pessoas achando um exagero o médico ter sido demitido. Outros, ainda defendendo a atitude dele de criticar quem "fala errado" e ainda se dando ao trabalho de corrigir gramaticalmente os comentários daqueles que criticavam o  médico ou elogiavam a conduta do hospital em afastar o profissional. Atitude esta que sempre me faz pensar sobre o estranho prazer que algumas pessoas têm em corrigir as outras.
Sou professora de língua portuguesa, e sinceramente, não sinto nenhum prazer em corrigir a fala das pessoas. Ao contrário, é constrangedor quando eu digo minha profissão e alguém fala: "deixa eu tomar cuidado com o jeito que eu falo... Ó, pode me corrigir, viu?". Não, senhores, eu não sou um leão-de-chácara da língua portuguesa. Eu não fico por aí vigiando como as pessoas falam. E acho a coisa mais deselegante ficar corrigindo as pessoas. Eu só corrijo textos dos meus alunos, em contextos bem específicos. E, na maioria dos casos, não trabalho de graça. Então, sintam-se bem à vontade para falar como quiserem!
Entretanto, já conheci profissionais das mais variadas áreas que adoram apontar quando alguém "fala errado", elas se sentem na obrigação de evitar que seu amado idioma seja "assassinado" (outra expressão que me dá calafrios). Se assassinássemos tanto o português, ele seria uma língua morta. E exatamente por ser uma língua viva é que ele apresenta tantas variantes, ainda mais em um país de analfabetos e analfabetos funcionais, que vivenciam a linguagem apenas na oralidade, que é tão mais fluida e mutável que a escrita.
Durante muito tempo reflito sobre esse hábito e sobre o famoso "meus ouvidos doem quando escuto isso". Creio ser algo bem diferente de amor ao idioma: concluo que se trata de uma forma de distinção. Se lhes parece estranho, explico-me. Vivemos em um país em que ler e estudar ainda é privilégio de uma elite econômica. Apesar da melhoria do acesso à educação ocorrido nas últimas duas décadas, esse privilégio ainda se mantém, considerando que a educação pública oferecida não tem qualidade. E as políticas educacionais mais inclusivas dos últimos governos federais (bolsas para alunos de baixa renda, programas de cotas e financiamentos estudantis) foram duramente criticados por essa elite.
Porque ter escolaridade, ter diplomas, é uma forma de se diferenciar desse zé povinho. Saber escrever e falar bem é uma forma de demonstrar essa suposta superioridade. Debochar de quem "não sabe falar" é a maneira mais clara de evidenciar essa distinção que tantos querem ver demarcada. Está ao lado de outras atitudes como exigir que a babá use uniforme em lugares públicos, mostrar a carteira de classe no dia das eleições (ao invés do RG) ou exigir na justiça que o porteiro lhe chame de doutor (outra notícia absurda que li nesta semana). É a nossa ignorância ilustrada. Não fui eu quem inventei essa expressão, infelizmente, pois a acho brilhante. Eu a li em um artigo que falava de pessoas que têm nível superior, muitas vezes, pós graduação, mas tal escolaridade não faz com que elas ampliem sua visão de mundo, que compreendam melhor sua sociedade, que se relacionem melhor com seu meio e com as pessoas. Elas não se tornam mais inteligentes ou competentes, apenas mais arrogantes.
Alguns leitores podem dizer que eu estou exagerando, assim como o hospital exagerou com o jovem médico (estou usando o adjetivo porque o vi em vários comentários como um atenuante de sua atitude, como se ele fosse quase um moleque, "não sabia o que estava fazendo, ainda vai amadurecer"). Sem me alongar na nossa conhecida condescendência com as más condutas de pessoas brancas e de classe média, respondo que, embora nem todas as pessoas que debocham do "falar errado" dos outros tenham diplomas ou um nível competente em seu próprio idioma, sua reação em corrigir os outros é sim de arrogância. Elas acreditam, mesmo que não tenham consciência disto, que exista um português correto, uma língua melhor que as torna, consequentemente, melhores  do que aqueles que não a conhecem. E isso lhes dá o direito de debochar delas. Só para aliviar o stress.
Vim de uma família que não tinha livros. Meu pai trabalhou na lavoura ainda aos 8 anos. Minha mãe começou a vender doces na porta de fábricas aos 10 anos. Eles foram alfabetizados, mas tiveram que deixar a escola. Ainda aprenderam muitas coisas pela persistência, porém muitos não têm essa sorte. Essas crianças que trabalham duro desde antes de completar sua primeira década de vida têm peleumonia e outras muitas doenças que alguns doutorezinhos nem suspeitam. O erro maior não é a prosódia, doutores, de algumas palavras. Não é a concordância verbal ou nominal. O erro maior que a sociedade comete todos os dias é condenar seu povo ao não lhe dar uma educação digna. E vamos continuar condenados à nossa realidade social desigual e violenta enquanto não compreendermos isso. Pois concordo com Brecht: o pior analfabeto não é o que não sabe ler ou falar - é o analfabeto político.


Nenhum comentário:

Postar um comentário