sexta-feira, 29 de abril de 2016

Entregar-se sem palavras

Já escrevi diversos posts neste blog sobre a minha relação com as palavras, com os livros, com a literatura... Mas pouco escrevi sobre meu encontro com uma forma de arte que me obriga a abandonar as palavras, o pensamento e deixar com que o corpo se expresse sozinho: a dança.
Cresci em uma casa com pouca música e nenhuma dança. Meus pais não dançavam, embora hoje eu sei que minha mãe sempre achou a dança de salão a coisa mais linda! Não se brincava o carnaval (fui ao meu primeiro baile de carnaval, com a família de uma amiga, aos 14 anos), não se dançava em festas nem em rituais - éramos católicos e rezávamos comportadamente com palavras santas, as divindades completamente vestidas e com expressões neutras.
Aprendi a ignorar o corpo, sobretudo na adolescência, em que o julgava feio, desarmônico, fonte do pecado e da dor. Foi um processo longo esse em que, reconhecendo-me, reconheci meu corpo como parte de mim, fonte de agilidade, beleza, alegria e prazer. E a dança foi muito, muito importante neste processo.
A primeira forma de dança que experimentei foi o forró. Eu tinha acabado de ingressar na universidade e o forró universitário estava começando a crescer no estado de São Paulo. Fui com um grupo de amigos para ouvir a música, pois eu dizia a todo momento: não sei dançar. E foi isso que eu disse para o primeiro cavalheiro que me pediu uma dança. E ele gentilmente me respondeu: "Não precisa saber, basta dançar". Uma lição maravilhosa sobre a dança: às vezes queremos saber, queremos dominar técnicas e esquecemos de dançar, de nos deixar conduzir pela música, de deixar o corpo se expressar livremente. E naquela noite me deixei conduzir pela música e pelos vários cavalheiros que me pediram uma dança. Ao final de cada uma, um agradecimento feliz. Alguns, mais gentis, davam beijos leves nas mãos das damas com quem dançavam.
Até hoje danço forró, e estou começando minha história com o samba de gafieira, e gosto demais da energia da dança de salão. No geral, há uma naturalidade e uma gentileza ao tocar o corpo do outro, há uma gratidão pelas pessoas com quem se dança.
A segunda forma de dança que experimentei e se tornou uma paixão eterna é a dança do ventre. Esta significa muito na minha trajetória de reconhecimento do meu corpo, sobretudo na sua harmonia e feminilidade. E também na superação de preconceitos. A chamada dança do ventre, nome ocidental dado a uma estilização das danças folclóricas dos povos árabes, ainda é muito mal interpretada pelo ocidente, que a vê, muitas vezes, apenas como um instrumento para seduzir homens. Uma visão muito restrita de uma tradição milenar.

Com a minha família de dança, no espetáculo "As quatro estações", dezembro de 2014.


Em 2005, conheci Daniele Camargo, então uma aluna do curso de Educação Física que dava aulas de dança do ventre dentro da universidade. Eu me inscrevi, mas não fazia ideia ainda do que era a dança do ventre. Dani me ensinou, como a tantas alunas que teve e tem, que a dança do ventre estava longe da vulgaridade que lhe atribuíam. Ensinou-nos a fazer movimentos com o corpo, mas dentro dos nossos limites e com todo respeito ao nosso estilo pessoal de dançar. Ela nos encorajava a nos apresentar mesmo sem sermos bailarinas profissionais, e a nos alegramos com essa conquista, e com a própria festa que deve ser a convivência das mulheres em torno da dança.

Espetáculo "As quatro estações", dezembro de 2014.


A dança do ventre me encorajou muito. Ela me remete a culturas milenares em que a mulher e seu corpo eram divinizadas; faz-me mergulhar nesse eterno feminino que me empodera.  E talvez as outras bailarinas nem se deem conta, mas ao se apresentar com a dança do ventre, elas podem mostrar a todos que seu corpo é mais seu. Independe de padrões de beleza, de fronteiras, de qualquer coisa.
A dança para mim é uma forma de linguagem, de alegria, de encontro. Mais que isso: dança é entrega.

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