sexta-feira, 25 de julho de 2014

"Eles passarão, eu passarinho"

Última semana de julho - despedida das férias escolares, um novo semestre que chega já com os cansaços acumulados do primeiro, especialmente porque a palavra férias, para a maioria dos professores, não deixa de ser entre aspas... Eu mesma, neste mês, li, pensei, escrevi, e nesta semana, lá estava entre tantos professores no COLE - o Congresso de Leitura do Brasil, que ocorre na Unicamp bienalmente. Um evento querido, que sempre renova minhas energias e esperanças na docência ao ver tantos professores inquietos, relatando suas experiências, projetos, dúvidas e angústias, mas também seus muitos acertos e delícias nessa aventura que é formar leitores na realidade contemporânea.
Mas algo singular marcou o COLE deste ano de 2014: a despedida de autores reconhecidos e queridos. Atipicamente, a Academia Brasileira de Letras está com 3 cadeiras vagas: Ivan Junqueira, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna deixaram este mundo - ou como melhor diria um outro acadêmico famoso, Guimarães Rosa, encantaram-se - nos últimos dois meses. Rubem Alves, falecido no último fim de semana, foi lembrado e reverenciado pelos poetas e amigos Severino Antônio, Régis de Morais e Carlos Brandão. E algo mais especial ainda, para mim, foi minha primeira participação neste evento como escritora.
Além do privilégio de lançar meu livro Embaixo da cama em Campinas, ao lado dos já referidos poetas, de Margareth Park e Tarcísio Bregalda, no dia 23/07, ontem, no dia 24, pela manhã, tive a oportunidade de conversar com o público e contar histórias. Foi um momento muito especial para mim. Comecei, como os poetas no dia anterior, com uma homenagem, mas não para estes escritores que morreram nestes últimos meses. Eu quis homenagear uma contadora de histórias bem menos famosa e muito importante para minha formação: minha avó, Júlia Silvério Correia. Neste mesmo blog, eu já escrevi sobre sua influência sobre meu amor pelas histórias numa crônica denominada "Meu primeiro aprendizado da poesia", lida ontem no COLE.
Tenho em minha sala um daguerreótipo dos meus avós maternos. Para quem não sabe, trata-se daqueles retratos antigos, geralmente colocados em molduras ovais, que eram retocados depois pelo retratista, para inserir cores, e que ficavam com uma coloração meio cinza, meio azulada, muito peculiar. Se minha avó estivesse viva, teria completado, nesta semana, 110 anos. Há 20 anos ela encantou-se. Mas olho sempre para aquele retrato na minha parede, às vezes buscando a coragem que me falta, às vezes imaginando seu olhar de aprovação às minhas lutas e muitas vezes com gratidão. Por ela ter gerado minha mãe e indiretamente, a mim. E por ela ter nos alimentado. Não apenas com o caldo de fubá com couve, os bolinhos de polvilho, os bolos de caçarola - mas por ter nos alimentado com a poesia tão cotidiana das colchas de retalho, dos pontos de crochê e das histórias que ela contava. Minha avó Júlia, minhas tias Teresa, Maria e Manuela me ensinaram a ouvir histórias, e assim ler um pouquinho esse bicho estranho e fascinante que é o ser humano. Por que é isso que está por trás das histórias, sejam elas cantadas, contadas ou escritas; sejam elas boas ou ruins; famosas ou anônimas.
Escrevemos porque somos humanos e porque transbordamos pela palavra. Às vezes, nos bancos das universidades, envergonhamo-nos desta verdade porque nos parece piegas e pouco científica. Queremos nos convencer talvez que a literatura é nosso objeto. Talvez seja para quem não a tem nas entranhas, para quem apenas a analisa e não a vivencia em seu modo de dizer-se e dizer o mundo.
Escrevemos porque nossa humanidade nos faz limitados, e transbordar-se pela palavra talvez nos engrandeça, talvez nos ajude na ilusão que permaneceremos. Júlia, Manuela, Maria e Teresa estão mortas, mas suas histórias - e até o timbre de suas vozes - ecoam no meu pensamento. Rubem, João, Ivan, Ariano (e agora seus sobrenomes não lhes valem, nem quaisquer outras convenções deste mundo) também, mas seus tantos versos, e contos e causos ficarão ecoando no pensamento de alguém, voando por este mundo... Pois como disse outro poeta já falecido, Mário Quintana, "eles passarão, eu passarinho".
Não consigo imaginar o voo que não seja pela palavra.