segunda-feira, 12 de maio de 2014

O maravilhoso-terrível: a maternidade

Não, meu texto não está atrasado. Eu propositadamente deixei passar o chamado Dia das Mães para escrever este texto. Deixei passar o afã da data, os comerciais fofos e todo o apelo comercial para escrever estas ideias que rumino há muito tempo.
Primeiramente porque não deveria ser preciso um dia no calendário para que a gente se lembrasse de expressar gratidão, admiração e afeto; mas, atualmente, infelizmente, tem sido assim para todos nós. E o pior, como temos consciência disso, a indústria e o comércio não deixam de explorar nossa culpa. A mensagem subentendida em muitas propagandas é: "como você não tem tempo para estar com sua mãe o quanto deveria, dê um grande presente para demonstrar o quanto você a ama" - pois nessa sociedade em que números valem tanto, é necessário quantificar o amor. E lembro-me de uma crônica do Veríssimo que coloca de forma hilária este aspecto: "O dia da amante". No início do conto, considerando os lucros do Natal, mas lamentando haver apenas um Jesus Cristo, um grupo de comerciantes resolve criar o Dia das Mães - afinal, quem se oporia? Ser contra o Dia das Mães seria ser contra a própria Mãe, com maiúsculo mesmo, ou seja, contra essa "instituição"!
Mais do que refletir sobre os apelos comerciais dos "Dias do/da ...", eu quero mesmo é falar da "instituição".  Perceba que a palavra instituição, embora sonoramente semelhante, é diferente de instinto. Portanto, a expressão instinto materno revela uma visão da maternidade que me parece equivocada: a ideia de que toda mulher quer ser mãe porque isso faz parte da natureza, é um instinto da fêmea. Se analisarmos os seres humanos como animais que somos, podemos pensar no instinto de procriação, pela necessidade de toda espécie de se perpetuar, mas não necessariamente de ser mãe - o que excede a biologia e se configura em um papel social, construído através da tempo e variável conforme a sociedade, o período histórico, etc.
Desculpem-me, leitores, especialmente leitoras, se esta afirmação é chocante para vocês. Eu entendo, afinal, somos educadas para acreditar que a maternidade é nosso destino natural, se não o essencial. Que sem filhos uma mulher não é completa. E, em uma visão cristã, que lhe estabelece uma "aura de santidade", a mãe é aquela que é só amor, perdão, abnegação: tudo suporta, tudo entrega, nunca pensa em si mesma e sorri com tudo isso. E para terminar essa lista: no imaginário geral, a mãe é vista como um ser assexuado - sua sexualidade já cumpriu sua principal função que é procriar, e sua sensualidade deve ficar oculta, até mesmo porque agora ela tem esse papel de "santa". Mas as mães não são (e talvez não devam) ser assim.
Não quero, com estas afirmações, negar a generosidade, o altruísmo, a responsabilidade que uma mãe (assim como um pai) deve ter para com seus filhos. E isso requer algumas renúncias, obviamente, pois crianças precisam daquilo de que hoje muitos de nós menos dispõem: nosso tempo e nossa atenção. Mas a minha análise discute exatamente o que, na minha visão, oprime as mulheres e as impede de curtirem mais a condição de mães: a idealização da maternidade como a melhor experiência da vida de uma mulher, e da mãe como esse ser sobre humano que descrevi acima. Quantas mulheres não caem nessa armadilha? Diante das propagandas, filmes, novelas que mostram mães embevecidas com bebês bonitos, saudáveis, carinhosos e sorridentes; diante de depoimentos comovidos sobre "ser mãe é a melhor coisa do mundo", algumas mulheres engravidam sem refletir no quanto, a partir deste momento, a sociedade lhe cobrará, quantos problemas ela vai ter que enfrentar e quantos momentos de conflito vai viver na construção de uma relação com esse outro ser que virá dela. Sim, construção, pois, contrariando a ideia de que uma mãe conhece seu filho desde que ele foi concebido, esse ser que habita seu ventre por nove meses é um ser diferente, com desejos, necessidades, personalidade próprios. Quanto mais ele cresce, mais isso se evidencia.
E muito além dos sofrimentos físicos das mães (o bombardeio de hormônios, o parto, a amamentação), há a já referida cobrança. Pois a mãe de verdade, a mãe com M maiúsculo eram as de antigamente, as que viviam para o lar. Antes que os leitores me acusem de exagero, pensem em quantas vezes, em conversas cotidianas e informais, se menciona o fato de tal criança estar aprontando muito, ou estar indo mal na escola, porque a mãe trabalha fora e, portanto, não dispensa o tempo necessário para educar, corrigir, orientar o filho. Percebam: raramente se fala que é o pai que não cumpre seu papel. Por quê? Porque ainda reina na mentalidade das pessoas que esse papel é da mulher. Nunca se exigiu de pais que renunciassem sua vida profissional e social para cuidar dos filhos. Sua obrigação era apenas prover. Hoje, a maioria dos lares brasileiros têm uma mulher como provedora. Mas, se observamos nas últimas décadas essa mudança do papel da mulher na família, o contrário não se observa: no geral, pais não passaram a ser mais responsáveis pelos trabalhos domésticos e pela educação dos filhos já que eles não são mais os únicos provedores da família. Há, sim, homens que assumem estes papéis, mas curiosamente, eles são aplaudidos como os maridos "que ajudam as esposas" - ou seja, o verbo revela que a responsabilidade continua sendo delas: o homem apenas ajuda por generosidade.
A mulher que não renuncia de seus interesses acadêmicos, profissionais e pessoais paga um preço alto por isso - não apenas a cobrança da sociedade, da mídia, da família, mas de si mesma. É nesse ponto que eu afirmo que a idealização da maternidade evita uma vivência feliz da mesma. A mulher que estuda, trabalha ou mantém atividades que não se relacionam com seus filhos diretamente sente culpa, pois, afinal, ela aprendeu e internalizou que deveria ser a mãe perfeita. Ainda que não pense isso conscientemente, ela se pergunta o tempo todo se é uma boa mãe, se o que faz é suficiente e correto para que seu filho seja saudável e feliz. Essas mulheres se exigem muito, e exatamente por não terem optado pela maternidade como full time job (considerando ainda que muitas nem tem essa opção, pois precisam de dinheiro para sustentar seus filhos), precisam provar para elas mesmas e para a sociedade que são boas mães e que fizeram a escolha certa. Isso gera uma ansiedade enorme, e também grandes doses de frustração, pois nem maridos, nem filhos, nem mães são perfeitos. São simplesmente humanos. E o dia a dia das famílias vai muito além daquele divertido comercial de margarina.
Além disso, há ainda outro ponto da idealização das mães que me incomoda: a não percepção de seu papel de opressão em relação às suas próprias filhas, de seu papel de omissão em relação a seus próprios filhos e, consequentemente, em seu papel fundamental na manutenção de uma sociedade androcêntrica e violenta para com as mulheres. É bizarro, mas muito comum, ouvir mães repetindo que dois filhos foram "criados igualzinho, mas são tão diferentes!". Bizarro porque relações interpessoais são únicas - ou seja, a relação que eu tenho com uma pessoa nunca será igual à que eu tenho com outra, pois as afinidades, os sentimentos, as rixas, as relações de poder são únicas em cada relação. Mas quando estas pessoas são filhos, e de sexos diferentes, as diferenças em sua educação, no Brasil, são muito visíveis. Já vi pessoas comemorando por estarem grávidas "de menino" ou frustradas por não estarem; outras falando "Que sorte!" para mães que só têm filhos homens. Já presenciei mães mandando filhas limparem a bagunça que seus irmãos fizeram, enquanto justificavam que "menino é assim mesmo, é mais bagunceiro, né?". Já ouvi mães dizendo para as filhas "se darem ao respeito" e até condenando sua sensualidade, enquanto sorriam ao ouvir que seus filhos eram "terríveis", que "não perdoavam uma", que "pegavam todas as meninas da escola" e pior, já vi mães culparem as namoradas dos seus filhos quando havia uma gravidez precoce, afinal, "como ela não se cuidou?" ou "ela fez de propósito para acabar com a vida do meu filho".
São tantos os exemplos que eu ficaria horas aqui escrevendo essas cenas que parecem do século XIX, mas que acontecem agora, quiçá neste momento em que escrevo. E volto à minha questão: essa diferença de tratamento entre meninos e meninas por suas próprias famílias ensina, nas entrelinhas, o valor de cada um na sociedade, mantendo a baixa auto-estima das meninas, que um dia serão mulheres e, talvez, mães. E que provavelmente, como mães, vão perpetuar essa visão depreciativa das mulheres e sua opressão. Recentemente, em conversa com uma amiga, ela me disse que, quando sua mãe faleceu, ela viu no caixão uma mulher real, enquanto que, para seus irmãos, havia morrido uma santa. E eu desconfio que isso não é prioridade da família dela: conheço homens inteligentes que estudam, leem e analisam criticamente tudo, mas são incapazes de fazer uma reflexão racional sobre suas mães, especialmente sobre como eles foram (e são) tratados de forma tão mais amorosa e benevolente por suas mães do que suas irmãs.
Freud, misógino que era, falava da necessidade de matar o pai simbolicamente em um processo de desenvolvimento saudável, na passagem para a fase adulta. Ele não percebeu talvez que, especialmente para nós mulheres, é mais difícil e importante matar a mãe. E isso não significa não amá-la, não reconhecer sua generosidade, suas renúncias, seus ensinamentos, seu amor. Ao contrário: é perceber que na sua humanidade, e na fragilidade inerente a essa condição, ela significou e significa muito, para o que há de melhor e de pior em nós. É preciso que uma mulher mate o machismo, a subserviência, as neuroses, a depreciação do ser mulher que provavelmente sua mãe, indiretamente, ensinou-lhe. E sobretudo, matar a idealização da maternidade, que impede tantas mulheres de viverem algo tão maravilhoso, mas tão terrível, com mais leveza, mais alegria, e menos culpa. Para que o primeiro adjetivo seja mais forte que o segundo.
 

 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

A falácia da simplificação

Segundas-feiras são tradicionalmente lamentosas - por que o fim de semana passou tão depressa? Imagine-se então uma segunda-feira pós feriado prolongado. Comecei o dia com um certo mau humor, ainda que seja maio, o mês mais lindo do ano, com suas manhãs frescas, azul denso no céu, luminosidade única.
Mas nem o azul de maio me trouxe consolo e liguei o computador para começar meus trabalhos, quando me deparei com uma notícia triste: "Escritora muda a obra de Machado de Assis para facilitar a leitura" (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/cidadona/2014/05/1445858-escritora-muda-obra-de-machado-de-assis-para-facilitar-a-leitura.shtml). Os leitores podem alegar que há coisas muito mais tristes acontecendo agora e que me entristecer com isso parece fútil diante das guerras e das mazelas terríveis pelas quais passa a humanidade. Mas eu explico porque essa notícia é digna de tristeza, já que interrompi outros trabalhos para escrever este texto e partilhar as ideias que começaram a me cutucar sem trégua.
Não é mistério para ninguém que sou apaixonada pela literatura, como escritora e como docente. E amo muito a obra de Machado de Assis. Sem dúvidas, este é um dos maiores autores do nosso país, quiçá de nosso continente e da literatura universal, embora pouco reconhecido internacionalmente. Mas não pensem que o meu texto vai na direção do "é um sacrilégio adaptar o grande Machado". Não se trata disso. Não se trata de incensar um autor canônico, dizendo que, depois dele, não há nada de bom a ser escrito. Nem condenar o autor que "aceita esse trabalho sujo" (conforme eu li em um comentário no Facebook), ou seja, o de adaptar uma obra clássica.
O que me incomodou nesta notícia foi a ideia leviana de que é possível "simplificar um autor", sem "mudar o que ele disse" - afirmações da escritora Patrícia Secco, que lançará em junho uma "versão simplificada" de O alienista. Elas demonstram que Secco não compreendeu muito do fazer literário. Afinal, se ela acredita que, tornando as frases mais curtas e trocando palavras difíceis por sinônimos ela estará, ainda assim, apresentando aos leitores um texto de Machado de Assis, e não de Patrícia Secco, ela não se deu conta ainda de seu ofício. Literatura não admite copidesque (salvo se feito pelo próprio autor, ou com a anuência deste, e preferencialmente antes da publicação): cada palavra tem seu peso, sua substância, seu sentido naquele texto que é único não necessariamente por suas ideias, mas por sua forma. E isso ocorre não apenas em textos de autores canônicos, mas em textos de autores jovens e pouco conhecidos que fazem literatura sem nenhum prestígio, nenhum glamour...
Então o problema não é "profanar" o Machado de Assis, mas a visão rasa, equivocada do conceito de autoria e de construção literária que Secco deixa transparecer em sua fala. Talvez ela não tenha percebido, ao ler Dom Casmurro, que seu enredo, ou seja, os fatos relatados no livro não são inovadores: um homem, ao considerar seu filho parecido com seu melhor amigo, considera sua esposa adúltera; eles se separam e, na velhice solitária, ele escreve um livro para relatar como ela sempre fora dissimulada e interesseira. Quase poderia ser transformado em um twitter, só para lembrar outra bobagem proferida, não há muito tempo, sobre outro clássico da literatura. Mas o que importa neste livro não são as ideias, ou "o que ele disse", mas como disse. O que faz deste livro um dos mais interessantes que já li é a personalidade de seu narrador-personagem, que sutilmente deixa transparecer que o foco daquele livro não é o adultério, mas o ciúme, tão intenso que ultrapassa a própria passagem do tempo (outro tema fundamental da obra). Há formas de simplificar isso? Se os nossos alunos não entendem que a palavra ressaca pode ter mais de um sentido, então o jeito é modificar a célebre expressão "olhos de ressaca", que caracteriza Capitu? Secco realmente acredita que fazer isso não seria "mudar o que ele [Machado de Assis] disse"?
Entretanto, gostaria de ressaltar, de forma bem clara, que não sou contra adaptações. E não estou me contradizendo, conforme os leitores perceberão. Minhas pesquisas, desde o mestrado, trabalham com adaptações, que não considero, necessariamente, como mutilações de obras literárias. O que eu quero dizer é que o juízo de valor não está necessariamente atrelado ao fato de uma obra ser ou não uma adaptação de outra obra anterior, mas na sua qualidade, na sua relevância em si. Obviamente, há adaptações muito ruins, que se constituem em paráfrases simplistas e mal feitas de obras que, no original, são riquíssimas, verdadeiros patrimônios da arte nacional e universal. Essas sim são meras mutilações. Em contrapartida, há adaptações (não apenas literárias, mas plásticas, cinematográficas) que dialogam com as obras primeiras (isto é, àquelas a que fazem referência) - configuram-se em objetos literários, que, embora tenham parte de seu sentido atrelado a uma obra que os antecede, tem autonomia e qualidade artísticas.
Esclareço esse ponto de vista muito particular, ao qual cheguei depois de anos trabalhando como professora e como pesquisadora de literatura infanto-juvenil, para dizer que não acho que fazer adaptação de uma obra clássica é "um trabalho sujo". O problema é a falácia da simplificação, isto é, a crença equivocada de que temos que tornar tudo fácil e divertido para os nossos alunos. A falácia consiste exatamente na ideia de que a diversão só acontece com o que é fácil, e que só faremos nossos alunos gostarem de ler se oferecermos a eles textos que eles compreendam imediatamente. O que não é verdade: crianças e adolescentes são muito espertos, e detestam textos bobos. Na maioria das vezes, eles percebem rápido quando os consideramos ingênuos e pouco capazes e usam isto quando lhes é conveniente. Mas quando os tratamos como pessoas pensantes e apresentamos um livro mais denso, dizendo que ele é maravilhoso, um pouco difícil, mas que confiamos na inteligência e coragem deles para lê-lo, a relação com o livro, com a literatura e com a escola muda.
Outra falácia da simplificação é que ela parece "boazinha", comprometida com a educação, mas, indiretamente, subestima nossos alunos e alcança efeitos inversos aos que propõe. Ouve-se tanto que os adolescentes leem cada vez menos e que, quando o fazem, não alcançam os níveis de compreensão leitora necessários à sua faixa etária e escolar. E como vamos melhorar isso? Oferecendo aos nossos alunos textos cada vez mais simples, com frases curtas e palavras que eles já conhecem? Ou o papel do professor de língua portuguesa e literatura não é ampliar o conhecimento de vocabulário, de estrutura textual, e consequentemente, da capacidade de reflexão e expressão?
Sinceramente, não creio que isso se alcance com o "Eu simplifico isso" de Patrícia Secco. Especialmente porque é ingênuo demais acreditar que é possível simplificar obras que não são complexas apenas na linguagem - esta apenas reflete a complexidade do próprio ser humano e de sua vida em sociedade, temas não só de Machado de Assis, mas de outros grandes autores da literatura nacional, clássicos ou contemporâneos.