sábado, 29 de março de 2014

Sobre cantinas, direitos e ditaduras

Depois de mais de uma década, entrar nas mesmas salas de aula - agora com outro mobiliário, computadores, datashow, ar condicionado... Eram as mesmas salas de aula do IEL, o Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, mas ao mesmo tempo, não eram mais! E essa contradição se explica: não eram só os móveis que estavam diferentes, não era apenas eu que não era mais a mesma (seres mutantes que somos nesse fluxo contínuo do tempo), mas tenho a sensação também de que a universidade mudou.
Não, esse não é apenas um post nostálgico, que vai concluir que "o passado é uma roupa que já não te serve mais", como diria o sábio Belchior. Também não vou enveredar pelo clichê "na minha época era melhor", e sim compartilho algumas reflexões que me assaltam nestes dias em que vemos notícias surpreendentes (ou nem tanto, infelizmente) de pessoas saírem às ruas e se manifestarem na web pedindo a volta de uma ditadura, ou de uma tropa de choque ser acionada dentro de uma universidade pública, a saber, a UFSC, para tratar estudantes como inimigos e criminosos.
Antes que algum leitor pense que a coerência me abandonou de vez, explico-me: entre as mudanças que tenho notado na Universidade Estadual de Campinas, chamou-me a atenção a diminuição significativa do números de cantinas na universidade. Particularmente, chocou-me o fechamento da cantina do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), pela ligação deste lugar com minha história pessoal e acadêmica. Foram muitos os dias em que, sentados nesta cantina, eu e meus colegas não apenas almoçamos e tomamos café, mas lemos textos, discutimos ideias, concebemos projetos que se materializaram em aulas, artigos, dissertações, teses, poemas, contos... Neste lugar, muitas reivindicações tomaram corpo, muitas lideranças se encontraram. E isso me leva a concluir que o fechamento de tantas cantinas (sobretudo na área de humanas e artes do campus) pode ter trazido o bônus de evitar alguns problemas como estes jovens desocupados que iam à Universidade só para fumar maconha, planejar greves e ficar perturbando a ordem.
Como escolhas lexicais não são aleatórias (momento análise do discurso), o pode ter trazido o bônus revela que eu já sei das justificativas oficiais para o fechamento destas cantinas, especialmente a do IFCH: questões sanitárias e estruturais foram levantadas, mas curiosamente não me parece ter havido muita tolerância para que estes locais se adequassem às novas condições. De qualquer forma, o que salta aos meus olhos toda vez que caminho até a cantina da Física para tomar um cafezinho, e vejo vazios aqueles espaços que antes aglomeravam tantos estudantes, é que a Universidade tem deixado, cada vez mais, de ser esse espaço de encontro e debate de ideias para ser um lugar onde as pessoas chegam, assistem suas aulas, e vão para a biblioteca, para o trabalho ou para casa.
Há boatos de que a intenção do fechamento das cantinas é a criação de uma praça de alimentação no Ciclo Básico (praça localizada no centro do campus). Isso me fez lembrar que, no ano em que entrei na Universidade, a cantina do IEL fechou e abriram-se licitações; o então diretor, o prof. Wanderley Geraldi, recusou uma proposta do Mc Donalds, dizendo que fast-food não era o perfil de uma cantina universitária, em que as pessoas não vão só para comer, mas também para estudar e conversar. E depois de tantos anos, parece que esse perfil será esquecido ao se colocar dentro da universidade uma praça de alimentação aos moldes de um shopping center.
Mas o que tudo isso tem a ver com a nova Marcha da Família ou a invasão da UFSC pela Polícia Federal e a tropa de choque? Eu creio que são fatos que revelam a mesma onda neoconservadora que estamos presenciando. Qual a principal bandeira dos que, neste fim de março de 2014, clamam a volta dos militares ao poder (em um anacronismo que dói aos ouvidos, já que eu questiono se as Forças Armadas teriam condições para isso na atual conjuntura)? Eles clamam pela ordem. Diante da corrupção e da ineficiência da educação e da saúde pública, eles clamam pela volta de uma ditadura militar, sem refletir no quanto esta contribuiu para a construção deste estado (e Estado) lamentável. É uma ingenuidade (na melhor das hipóteses) que beira ao risível, pois a qualidade da educação e da saúde pública já não era exemplar entre 1964 e 1985, quando ela atingia bem menos pessoas e não era um direito universal (como foi garantido depois pela constituição de 1988). Da corrupção então, nem se fala! É claro que não havia escândalos de corrupção naquela época, com a existência de um AI-5, uma imprensa calada e um governo que podia, portanto, fazer absolutamente tudo o que quisesse, inclusive prender, torturar e matar pessoas!
 De uma forma messiânica, os que clamam a "volta dos militares" acreditam que haverá um poder ditatorial que será capaz de resolver miraculosamente todos os problemas da nação, do dia para a noite. É notável que a ascensão de governos totalitários tenha se dado em momentos de crise, pois o ser humano adora alguém que resolva seus problemas sem ele precisar ter trabalho (e a democracia dá muito trabalho!!!). Mas a que custo? E aí chegamos no ponto mais perverso: as justificativas para a dissolução de direitos individuais, as torturas e as mortes. Em depoimento dado nesta quarta-feira, o coronel reformado Paulo Malhães disse que o regime militar torturou e matou "tantos quantos foram necessários". Confessou a prática de mutilação dos corpos despejados em mares e rios para, se encontrados, não serem identificados por suas famílias. Seu depoimento é chocante, mas ainda mais chocantes são os comentários que o seguem na página da BBC (http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/03/140326_depoimento_coronel_ditadura_jc.shtml).
Comentários que afirmam que estas pessoas torturadas e mortas eram criminosas, inimigas da ordem e da nação, que reproduzem a lógica do próprio coronel: "Não foram presos porque jogavam bolinha de gude ou soltavam pipa". Mas os comentários expostos na webpage não são de pessoas dos anos 1960! São comentários análogos aos que ouvimos hoje de pessoas jovens, para justificar qualquer ato de violência contra os que são considerados indesejáveis ou inadequados ao sistema. Assim, os que se sentem dentro da ordem não se importam que os que estejam fora dela sejam privados de direitos, da liberdade ou até da própria vida, já que eles não são pessoas de bem: não trabalham de forma remunerada de 8 a 10 horas por dia, são os vagabundos que querem discutir política nas cantinas universitárias, são os maconheiros. Se estivessem trabalhando, estariam contribuindo muito mais para que o Brasil se tornasse um país competitivo. Essa última frase, eu ouvi literalmente de um professor de uma faculdade privada a respeito de alguns alunos que se organizavam em um movimento pela melhoria da qualidade do ensino na própria instituição.
E eu me pergunto: é isso que queremos: um país competitivo, com um governo forte? É melhor tomar cuidado com aquilo que se deseja...