segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Lia e os Pavanáticos

Não, caro e raro leitor: não resolvi abandonar as letras pela mais promissora carreira na música pop. Este título não é o nome de uma banda moderninha, e sim uma referência ao meu recente encontro com os alunos da EMEF Maria Pavanatti Fávaro.
A convite da professora e escritora Cida Sepúlveda, fui à Pavanatti (como a escola é carinhosamente referida por seus alunos, funcionários e professores) para um bate-papo (não ouso dar o título de palestra!) com os alunos, que haviam previamente lido meu primeiro livro, Embaixo da Cama. Foi Cida que criou o termo "Pavanáticos", que também dá nome ao jornal da escola, mantido por ela e pelos alunos.
A Pavanatti é uma escola simples, como tantas outras escolas públicas da periferia de Campinas, mas tem um diferencial: uma diretora, Sandra, e uma professora, Cida, que amam a literatura e estão tentando despertar entre os alunos um interesse maior pelos livros. Assim como eu, outros escritores e artistas já foram convidados para ir à escola e partilhar com os alunos suas experiências com a arte. É assim que eu defino a tarde que passei com os pavanáticos: um momento de troca de experiências.
Sempre que vou a uma escola de ensino fundamental falar sobre literatura e sobre os livros que escrevi (o que sempre envolve falar sobre a vida que pulsa nas palavras), eu me pergunto sobre como dizer, ou seja, que palavras usar, que narrativa construir para fazer essa nova geração compreender o que o livro significou na minha vida. Afinal, passei a infância em uma casa sem livros - objetos de desejo, quase um luxo para uma família iletrada, cujos ancestrais não tinham calos nos dedos por escrever, mas calos nas mãos por pegar cedo nas enxadas, nas vassouras, nas agulhas de costura. Sempre me pergunto se vou me fazer compreender, mas percebo que o tempo e as diferenças que me afastam destes alunos é sempre menor que o poder da experiência humana. Sim, continuamos com conflitos tão semelhantes: a eterna solidão dentro de nossas próprias famílias; o medo de se mostrar apaixonado e vulnerável diante do outro; a dúvida em relação ao que faremos de nossas vidas, quando somos muito jovens... Eu vi esses sentimentos no olhar de vários alunos enquanto eu relatava como surgiu em mim a vontade de criar e escrever histórias.
Entre perguntas sobre como surgem os nomes dos personagens, quanto tempo demora-se para escrever um livro e qual seu processo de "fabricação", percebi o quanto os pavanáticos, como tantos outros adolescentes, têm sede de conhecimento. Fico chateada quando escuto pessoas dizendo que os jovens de hoje não querem saber de nada. Claro que há, atualmente, adolescentes desinteressados, como sempre houve, em todas as épocas e gerações. Mas não são a maioria absoluta, e percebemos isso quando lançamos a eles algumas sementes e vemos o quanto floresce. Estes jovens precisam de estímulo, merecem ser tratados como pessoas inteligentes que podem ainda desenvolver muito, caso não os deixemos de lado com a desculpa de que eles "não querem saber de nada".
Como eu disse a eles, perto da minha despedida: escrever nos faz pensar no nosso lugar no mundo. E quem não pensa em seu lugar no mundo, está aqui de bobeira. Eles entenderam o recado, li isso no olhar deles. E li algo que ainda está por ser escrito: o lugar de cada um, como ser humano e como cidadão.
Fiquei feliz por participar, mesmo que por poucos momentos, desse projeto da narrativa da vida de cada um. Obrigada, pavanáticos!

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Mais difícil ainda é não escrever

Dias que não passam, eles parecem quicar e já desaparecer. Queria que as horas realmente passassem, que eu pudesse sentir seu passo indiferente, mas elas não me dão esse direito, tão depressa atropelam meus dias. É sempre assim no final do ano: parece que as horas estão treinando para a corrida de São Silvestre!
E nesse atropelo de horas e dias, a literatura foge de mim. Porque poesia requer lentidão, a poesia me obriga a parar o passo para olhar a copa das árvores, a interromper o fluxo para deixar que os versos imponham seu ritmo. E como fazer isso nesse turbilhão de coisas? De provas, de notas, de documentos a preencher e assinar? Aí vejo de longe as palavras que me observam ressentidas de eu trocá-las pelos números. Creiam, minhas amadas, é pela necessidade e não pela paixão...
Não tenho escrito com frequência e isso me faz mal - é como uma insônia às avessas, pois me sinto adormecida para aquilo que o mundo tem de mais fascinante: tenho que fechar os olhos e os ouvidos, pois não posso correr o risco de ser capturada pelo lirismo; tenho que soprar qualquer flama que ameace se acender em mim. Para mim, que adoro me distrair, é penoso...
Dia destes li uma crônica de Vinícius de Moraes, a trabalho e não a passeio, mas não adiantou - as palavras de Vinícius me reviram sempre, ainda que não sejam as dos seus poemas que me eriçam a pele. A crônica falava da dificuldade de se escrever uma crônica. Da crise de criatividade que por vezes assola o escritor obrigado a publicar semanalmente. E eu, na minha proverbial imodéstia, comecei a discutir com Vinícius. Que crônica era tudo que fluía dos dedos do escritor, assim, de forma fácil. Que eram como o pão de cada dia, e isso não é desmerecê-la, não! A crônica é aquele almoço que a gente prepara com o que encontra na geladeira, com os legumes da estação, e nem por isso o sabor é menor.
A crônica está nos sabores do cotidiano. E o que ocorre despretensiosamente e que chamamos de cotidiano é muito bom, assim como a crônica, que não tem mania de grandeza. E nisto está sua beleza. Sabe-se passageira, então esforça-se para, nesse instante, deixar algumas gotas de lirismo matutino, como uma aurora a espalhar seu orvalho sobre o aparentemente áspero e monótono do dia a dia.
Se é difícil escrever uma crônica? Às vezes. Mais difícil ainda é não escrever.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Somos tão jovens

Ontem, domingo à noite - dia e horário propício para a famosa depressão pré-segunda-feira. Eu estava no meu sofá rodando canais e, em meio à mediocridade televisiva, encontrei consolo no Canal Brasil, que passava um documentário que há tempos eu queria assistir: "Rock Brasília", de Vladimir Carvalho. Há tempos, curiosamente, é o título de uma das canções de que mais gosto da banda Legião Urbana, talvez a mais importante desta geração do rock dos anos 80, nascida na capital do Brasil, em um momento em que, embora já se esfacelando, a ditadura militar liderava o Brasil.
Este texto não será uma resenha sobre este documentário, que me emocionou muito em alguns momentos por me trazer canções que embalaram meus anos de adolescência e me ensinaram a ler. E é sobre isso que quero escrever. Sobre como aprendi a ler ouvindo. Sim, aprendi a ler ouvindo Legião Urbana. Renato Russo foi o primeiro poeta que li: naquele momento, com 13/14 anos, eu nem percebia o quanto de elaboração linguística suas letras continham, afinal, eu não estava ouvindo Legião para identificar metáforas. Mas eu sabia que aquelas letras me faziam pensar na vida. Ouvir Renato Russo cantando era ter certeza de que alguém entendia o que eu estava vivendo, ao mesmo tempo que seus versos me traziam um estranhamento, uma surpresa, uma pergunta: como alguém conseguiu dizer meus sentimentos desta forma? Como alguém consegue descrever um mundo com essas palavras, com essas rimas e com esse ritmo? E eu saía cantando "Quase sem querer", "Tempo perdido" e "Há tempos" dizendo que eram canções feitas para mim, o Renato (olha a intimidade!) ainda não sabia, mas aquelas canções eram minhas.
E hoje sabendo que as canções e os poemas pertencem àqueles que se apropriam deles, àqueles que passeiam com os pés descalços entre as suas palavras como quem anda lentamente pela praia (os pés se marcando no espaço onde areia e mar se encontram), eu digo ainda mais que estas canções são minhas. E penso em sua complexidade e compreendo porque elas me traziam mais perguntas do que respostas, naquele momento da vida em que a gente perdia as crenças nas respostas que a família, a religião, a escola, os adultos nos davam tão prontamente. Eu queria novas respostas. Mas uma canção que diz "Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana/ Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana/ E nas escolas as crianças aprendem a repetir música urbana" reafirma: desconfie das instituições, questione o que lhe foi ensinado, não creia nas respostas simplistas...
E vendo aquele documentário, eu me deparei com um pensamento: onde foi parar este inconformismo juvenil? Onde foi parar esta desconfiança sadia que fez com que gerações de jovens tivessem o ímpeto de rejeitar qualquer governo opressivo e ditador? Onde? E a resposta assustadora: morreu. Então, ontem, Dia de Finados, lamentei a morte de uma geração, sem forças para escrever uma elegia que a homenageasse com a poesia que ela merece.

Laerte e seu humor para nos levar à lucidez!

 
Sei que minhas palavras podem soar exageradas, mas esse é o meu sentimento, uma espécie de luto ao perceber uma onda neoconservadora que se levanta em nossa juventude e que ameaça afogar princípios democráticos que, em um passado recente, eram negados, e pelos quais pessoas lutaram e morreram. Ao ver pessoas, e principalmente, jovens pedindo um golpe militar - sim, um golpe, este é o nome exato quando há intervenção em um governo eleito democraticamente -, a minha perplexidade é enorme, mas não consigo simplesmente dizer que eles fazem isso porque não têm memória ou conhecimento histórico.
Como diria a canção de Renato Russo, "somos tão jovens", mas essa juventude, pela justificativa da pouca memória ou pouca maturidade, não justifica algumas posturas que me parecem indefensáveis. Não acho que estes jovens sejam inocentes, que eles não sabem o que significa uma ditadura, que eles não sabem sobre a censura, a corrupção, a tortura e a morte que pairaram sobre o Brasil no período militar. Em 1964, houve setores da sociedade civil que saíram às ruas em apoio aos militares - a elas sim, pode-se dar o benefício da dúvida: elas não sabiam, talvez, o que estava por vir. Elas não sabiam que seus filhos poderiam morrer por dizerem o que pensavam.
Mas hoje, 2014, 50 anos depois, sabemos. Todos sabemos. Vi em um vídeo na internet um jovem dizendo que "aconteceram coisas na ditadura militar, mas não é tudo isso que falam, as pessoas exageram". Percebam o inominado: "coisas"... Deem-se nome aos bois: ocorreram censuras, torturas, mortes - mas se parte desta nova (e da não tão nova) geração quer negar isso, não é por ingenuidade, é porque, no fundo, está de acordo com este sistema. Tenho a impressão que, há alguns anos, as pessoas tinham um certo pudor em declarar isso, o que me dava alguma esperança... Mas tenho percebido que as ideias perigosas de resolver os problemas da nação pela força e pela violência estão sendo veiculadas em alto e bom som, por um número assustador de pessoas.
Somos tão jovens, no exercício da democracia. E eu temo que nossas conquistas, ainda frágeis, se percam pela inadvertência dos que não as valorizam. Tomemos mais cuidado com aquilo que pedimos - há sempre a possibilidade de se conseguir. E se um dia alguém invadir nossas casas às 3 horas da manhã sem mandato judicial e um ente da nossa família ou nossos amigos começarem a desaparecer sem prisão ou julgamento notórios (coisa comum nos regimes de exceção), não sejamos hipócritas a ponto de dizer que não sabíamos.     

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um sorriso de Brás Cubas

Saúdo a nova semana que chega, com alívio. A semana anterior teve horas tão pesadas, com uma tensão tão densa que quase se podia tocá-la com as mãos. Não era apenas a última semana antes do segundo turno das eleições, mas uma semana cheia de afazeres que não terminavam nunca. Uma semana em que um anjo safado, um chato de um querubim, predestinou que eu teria que trabalhar com algumas pessoas estressadas. Bem poucas, na verdade, mas com o impressionante poder de tirar a calma de todos ao seu redor. Ou quase. Porque, no meio de tudo isso, eu estava lendo Machado de Assis.
Hein? Pode se perguntar um leitor incrédulo, pensando talvez que haja algum autor de auto-ajuda com este nome. Não, trata-se dele mesmo, do “grande Machado”, como diriam alguns, do Joaquim Maria, como eu diria, na minha pretensão de intimidade com este autor que me proporcionou e proporciona tantas horas de prazer e reflexão.
E não é que lá estava eu, enquanto as pessoas ao meu redor se estressavam e mordiam a própria sombra por coisa pouca, com Dom Casmurro em minhas mãos? E pude recorrer a passagens fascinantes desta obra que nunca se esgota. Sim, eu já li este livro muitas vezes, E a cada vez que vou abordá-lo em uma aula, dou-me novamente o deleite de revisitá-lo. E a cada vez, percebo coisas novas.
Pobre daqueles que pensam que só se trata de um livro sobre adultério. Que pensam que sua grande questão é se Capitu traiu ou não Bentinho... Isso é o que está na superfície, mas há outras coisas mais profundas neste livro. Para mim, por exemplo, um dos seus temas mais interessantes é a passagem do tempo. Ou a persistência da memória, essa coisa difusa que também se molda ao sabor das paixões. Vejo o velho Bento Santiago a contemplar Bentinho e sua amiga Capitu, a companheira da meninice, como contempla os retratos da réplica da casa de Matacavalos. São imóveis, inertes, mortos. Não adianta tentar atar as pontas da vida, elas estão para sempre separadas. Só a memória, só a narrativa as une. O gesto da escritura é a única forma de lutar contra o tempo inexorável.
As pérolas que reluzem nas páginas do livro sobre este tema são várias, mas se encontram também em outros títulos do autor. Como esquecer do delirante passeio de Brás Cubas, no dorso de um hipopótamo, a contemplar a sucessão dos séculos – e concluir a repetição da tragicomédia humana por tantas civilizações? E as reflexões do menos irônico e mais melancólico Conselheiro Aires, em seus passeios pelas ruas do Rio, já no outono de sua vida (e da carreira do autor)?
Então eu volto para aquele “quase” do final do primeiro parágrafo. Diante dessas reflexões sobre o tempo, com as quais Machado de Assis sempre contribuiu, acho que estou aprendendo a sorrir mais. Nesta semana, eu me flagrei com um sorriso que um colega classificou como “de Monalisa”, mas eu diria ser “um sorriso de Brás Cubas”, aquele sorriso de quando se compreende o quanto a humanidade é lamentável e se resolve aceitar o fato. Diante daqueles que se julgam tão importantes, que se estressam tanto (porque eles precisam fazer tudo, afinal, ninguém o faria tão bem e perfeitamente), que perdem completamente a gentileza para com os que estão ao redor, ou com aqueles que pensam diferentemente, nada nos faz tão bem quanto um sorriso de Brás Cubas.
E pensar na inexorabilidade do tempo me acalma, porque me faz enxergar a inutilidade de tanta preocupação, de tanto desgaste. Alguns problemas são pequenos demais se pensarmos na dimensão do mundo e de sua história. Afinal, daqui a pouco tempo, seremos apenas retratos na parede – talvez nem isso, nessa era em que quase não se imprimem mais fotografias... 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A menina, as armas e os livros

Um dia vi um brilho intenso nos olhos de um homem que a vida em muito endureceu. Logo o brilho se transformou em uma lágrima que escorreu pelo rosto do homem que raramente chorava. Este homem era meu pai. Ele discretamente enxugou essa lágrima antes que outros a vissem, antes que fotógrafos chegassem, junto com a minha irmã. Era o dia de sua formatura na Faculdade de Direito. Mais do que um diploma, era um dia histórico para nós: pela primeira vez na história da nossa família, uma pessoa teria um diploma de graduação. Mais do que isso: era a primeira mulher a conquistar esse lugar.
A lágrima era misto de orgulho, de alegria, mas também testemunhava os sofrimentos e as renúncias que certamente meus pais fizeram para que eu e minhas irmãs estudássemos nas melhores escolas. Mais tarde, naquele mesmo dia, meu pai disse uma frase que está gravada em minha mente: "Não me arrependo de nenhum dia, de nenhum centavo que investi em vocês". Embora a linguagem pareça tão mercadológica, isso significa "Eu amo vocês, minhas filhas" ou "Eu me orgulho de vocês, minhas filhas", na linguagem do homem que saiu de casa aos 17 anos com duas mudas de camisa e um sapato furado, trabalhou como jardineiro, pedreiro, metalúrgico, segurança e, enfim, montou um pequeno comércio. Do homem que, diante de uma pequena ascensão social, optou por mudar suas filhas de escola, ao invés de realizar seus sonhos de consumo. Do homem que muitas vezes prezou mais a contabilidade que o prazer, frustrou suas filhas adolescentes por não lhes dar algumas roupas, viagens e festas, mas que jamais se recusou a comprar um livro. E isto mudou a minha vida.
Venho de uma família machista (como tantas no Brasil) em que a educação das meninas não é a prioridade. Tenho uma prima cujo irmão fez curso pré-vestibular, ingressou na universidade, mas ela não teve o mesmo apoio da família. Para ela, não havia recursos para o pré-vestibular, nem para a mensalidade de uma faculdade privada, nem qualquer apoio para que ela saísse da cidadezinha em que morava para fazer uma universidade pública (afinal, há exemplos na família de mulheres que saíram da casa dos pais para estudar, trabalhar, e "se perderam"). Sim, queridos, século XXI, não estou relatando o que aconteceu com a minha bisavó, infelizmente! No fim de semana em que eu fazia o vestibular da UNICAMP, minha mãe teve que ouvir de um tio a seguinte pérola: "Pra que estudar tanto para limpar bunda de criança?". Ele riu, minha mãe, não. Ela, com toda a delicadeza que lhe é peculiar, disse: "Eu espero que minhas filhas limpem bunda de criança porque eu quero muito ser avó, mas elas não vão fazer só isso na vida".
São muitos os exemplos que se espalham para além da minha família, na qual também há exemplos notáveis de ruptura com este pensamento retrógrado e opressor, como meus pais, que criaram três meninas com livros nas mãos. Nesta semana, ao saber que o Prêmio Nobel da Paz havia sido entregue a  Malala Yousafzai, fiquei muito feliz e emocionada. Para os que não sabem, Malala é uma adolescente de 17 anos que, com apenas 12 anos, começou a escrever sobre a situação das meninas no Paquistão, sob o regime talibã. O pai de Malala, dono de uma escola, contrariava o regime ao permitir que as meninas estudassem, e estimulava a militância da filha em favor da educação escolar feminina. Em 2012, aos 14 anos, houve uma tentativa de assassinato, na qual Malala levou um tiro no rosto e um no pescoço, ficou em coma por vários dias, mas, felizmente, sobreviveu e foi transferida para um hospital na Inglaterra. Recuperada, ela escreveu uma autobiografia e continua sua militância em favor da educação das meninas.

 Malala Yousafzai, Prêmio Nobel da Paz em 2014
O exemplo de Malala me move e comove. Sempre pensei na sorte tão diversa que tantas mulheres da minha família tiveram por não terem acesso a uma educação que lhes ensinassem que elas tinham valor, que eram tão inteligentes quanto os homens e que o mundo também era grande para elas. Que não é a presença de um homem, uma aliança no dedo ou a ausência destes que definem o seu valor. Que lugar de mulher é onde ela escolhe estar. Que o que você lê, reflete e pensa é mais importante que o seu peso ou a cor do seu cabelo. E principalmente: que, independente do sexo, somos seres humanos dignos de respeito, e  por isso jamais devemos aceitar sermos diminuídas, humilhadas, oprimidas ou agredidas de qualquer forma.
Sim, foi a minha educação escolar, foram os livros que chegaram às minhas mãos que me fizeram enxergar a mim mesma como esse ser humano digno de respeito. A literatura me formou como um ser mais sensível e humano, capaz também de respeitar mais os que estão ao meu redor. A literatura alimentou minha ojeriza à violência, à opressão e meu amor à liberdade, "essa palavra que o sonho alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda", como disse a Cecília Meireles. E por isso, ainda acredito que o livro é a coisa mais subversiva que colocaram em minhas mãos. Esta é a razão pela qual os regimes ditatoriais temem que uma garota leia, que faça do livre pensamento e de suas palavras as suas armas, resistindo às armas de fogo e não se intimidando diante delas. 
E Malala nem suspeita que temos isso em comum: que tivemos pais que acreditaram na importância da nossa educação, que acreditaram no nosso valor e na nossa inteligência.
Obrigada, pai! Obrigada, Malala!

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Posso, sem armas, revoltar-me?

Começo a segunda - e a semana - lendo Carlos Drummond de Andrade. Por que o verso é minha cachaça, como eu já disse em outro post. Ontem, durante as apurações das eleições eu estava, literalmente, bebendo cachaça. Agora, segunda de manhã, pega mal. Temos que manter a sobriedade, embora nos pareça que todos se embriagam, tamanha incoerência entre o que se diz e o que se faz.
Não, não vou falar exatamente dos resultados das urnas. Na conversa que travo com Carlos, mais uma vez - já conversamos tanto que o trato pelo primeiro nome - ele me fala sobre a "ração diária de erro, distribuído em casa", pelos ferozes "padeiros e leiteiros do mal", e isso já na década de 40. Toma-me a sensação de que realmente a humanidade anda em círculos.
Mas discuto com Carlos: quem são estes "padeiros e leiteiros do mal"? Ah, a minha insolência em discutir com os poetas que já têm seu capítulo no livro didático de literatura e até caem no vestibular... Mas foi você um dos que me ensinou a ser insolente, Carlos, aguente agora. Mas Carlos só me responde que "o tempo não chegou de completa justiça", que "o tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse".
E que impasse! Como eu disse antes, não é o resultado das urnas. É tudo o que vem antes dele, e tudo que o motiva. Começo pelo mais grave: a profunda lacuna educacional que impede que as pessoas compreendam o que é a política. E a profunda (e cômoda) falta de consciência que leva a maioria a sempre colocar a culpa de tudo "nos políticos", esses seres que vieram de Marte, talvez, já que ninguém se identifica abertamente com eles.
A coisa mais desoladora é ver essa contradição. Pessoas que falam em mudanças, mas nem conseguem enxergar as mudanças que estão em curso, nem compreender que elas ocorrem em um processo (e não por um passe de mágica) que envolve toda uma sociedade com velhos e lamentáveis hábitos. Pessoas que reclamam do estado em que as coisas estão, falam da necessidade de uma "nova política" mas mantêm um governo estadual que está no poder há décadas, tempo que lhe foi suficiente para consolidar a falência da escola pública e a total desvalorização do professor, entre outras provas de incompetência e descaso. Pessoas que reclamam da impunidade, mas quando se dirigiam ao seu local de votação com seu carro, fizeram questão de estacionar em local proibido e dificultar absurdamente o trânsito; ou que, sem documento com foto, faziam aquele escândalo em sua seção quando o mesário dizia que sem este documento ele não poderia votar. Claro: onde estão os meus direitos? Deveres, hein, o que é isso?
Carlos me responde que "é tempo de partidos, tempo de homens partidos", mas isso ficou no passado, querido poeta. Hoje as pessoas se revoltam contra os partidos, dizem que não acreditam na política partidária, que "político bom é político morto" (pasmem, ouvi isto ontem, literalmente!), que se não fosse obrigatório não votariam. Ah, eu preciso parar de fazer análise do discurso nos almoços familiares, pois está ficando cada vez mais difícil engolir. Enfim, vos pergunto, concidadãos: vocês realmente acham que em um período da história em que não existiam nem eleições, nem partidos, estávamos melhores? Quando reis governavam hereditariamente por direito divino estávamos melhores? Por favor, me instruam: citem um sistema de governo melhor, proponham-no publicamente, não guardem a  sabedoria apenas para vocês.
Ironias à parte, estou um pouco cansada da lamentação inócua, que só faz eco e cai no mais absoluto conformismo. Eu não penso que nosso sistema político e partidário seja ótimo. Mas faço questão de votar. Pessoas morreram para que eu tivesse esse direito. E se eu não estou satisfeita com os partidos, seus líderes e seus eleitos, posso dizer isso abertamente neste blog, ou propor a fundação de um novo partido, ou eu mesma me candidatar por um deles. Pessoas também morreram para que eu tivesse esses direitos.
"Por fogo em tudo, inclusive em mim" não é uma boa opção, Carlos. Sim, sei que às vezes somos tentados a isso. Eu também já sonhei "dinamitar a ilha de Manhattan", inclusive, já o fizeram, mas creio que isso não resultou em nada positivo. Sei que você sorrirá, talvez me chamará ingênua, querido poeta, mas eu acredito que o mundo é resultado das nossas escolhas, ou da nossa omissão. Então, se não estamos felizes com as opções que temos nas urnas, isso é sim resultado das nossas escolhas e omissões. Acabo de ver um vídeo do Porta dos Fundos sobre isso. Ele expressa a insatisfação do povo brasileiro com a "falta de opções" em relação aos políticos. Mas não questiona minimamente o que fazer diante disso. Que pena que o problema não seja na urna, mas naquela pecinha que fica bem em frente e aperta os botões! Para quem quiser ver o vídeo, acesse:

https://www.youtube.com/watch?v=e8h7D97w5Bo

O povo brasileiro quer continuar pensando que aquela lista de candidatos não nos representa. Não creio que apenas por ingenuidade, mas também por comodismo. Sim, aquela lista de candidatos colada nas paredes das zonas eleitorais pelo Brasil afora representa a nossa sociedade. Se eles não têm noções suficientes sobre a gestão pública, se são corruptos e desonestos, se só querem se eleger para "mamar nas tetas do governo", eles aprenderam esses valores na sociedade brasileira que os formou. E se eles foram eleitos, é porque alguém se identificou com eles e com seus discursos, não é?
"Preso à minha classe e a algumas roupas", angustio-me, Carlos. Vejo essa falta de auto-responsabilização e essa desqualificação da política institucional como algo muito perigoso. Afinal, com a justificativa da corrupção e do caos que reinavam no país, já instauraram ditaduras antes. Será que ninguém percebe que delegar o trabalho de "salvar a pátria" para alguém pode parecer mais cômodo, mas o resultado poder ser hediondo? Será que Hitler e outros tantos ditadores já não nos mostraram essa lição?
"Em vão tento me explicar, os muros são surdos", Carlos. Ao menos tenho você para conversar. Mas não me contento, preciso falar para mais pessoas, pois "meu coração não é maior que o mundo, é muito menor, nele não cabem nem as minhas dores". Preciso escrever.
Mas, às vezes, me questiono: "devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?" Hei de ver uma flor "furar o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".
Enquanto a flor não nasce, resta-nos suportar a náusea.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O vírus do amor dentro da gente

Inspirada ao ler um texto do poeta Jeová Santana sobre Gabriel Garcia Marques, resolvi publicar aqui no blog uma resenha que escrevi há alguns anos sobre uma de suas obras, diga-se de passagem, a minha preferida, "O amor nos tempos do cólera", e sua adaptação cinematográfica. Não esperem os leitores uma crítica acadêmica ou um olhar técnico sobre o filme - eu reconheço a minha insignificância nesta área, eu não sou cinéfila, tratam-se apenas das minhas impressões pessoais sobre o filme. 

O vírus do amor dentro da gente

Durante uma viagem, há alguns anos, me hospedei numa pousada em que havia uma biblioteca. Foi lá que, pela primeira vez, abri um volume de O amor nos tempos do cólera. Ao contrário do que esperam os leitores, não vou dizer que fiquei o restante da viagem com o livro entre as mãos, esquecida da paisagem e das pessoas que me cercavam. Desse primeiro contato com o livro, ficou uma viva impressão do seu primeiro parágrafo, que li sucessivas vezes. Em especial, a primeira frase: “Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados”. Belíssima, sonora. Digna de ser lida e relida.
A primeira frase já prenuncia a grandeza do livro e seu tema, nada inovador e sempre inesgotável: os amores contrariados. Nas cerca de 400 páginas do romance, se desenrola a história de Florentino Ariza, um telegrafista que, ao fazer a entrega de um telegrama na casa de Lorenzo Daza, visualiza por uma janela a filha do comerciante, Fermina Daza. A rápida visão foi suficiente para inocular um amor incurável, que resistirá por décadas e transporá todos os obstáculos com paciência.
A epidemia do cólera se faz presente no enredo e indica o estado sanitário da Colômbia – e de toda a América Latina – na passagem do século XIX para o XX). Mas a principal doença de Florentino Ariza é o amor. Por mais lugar comum que essa frase possa parecer, não podemos dizer o mesmo da história de Florentino Ariza. O personagem do livro é um romântico, na sua concepção e vivência do amor, nas maneiras de vestir e no modo de escrever cartas. E o amor realmente lhe causa náuseas, dores, febres e suores, como uma doença. Trânsito Ariza, a mãe que o concebera num caso de amor adúltero, e que o criara, portanto, sem o pai, já casado, achava glorioso sofrer por amor. E incentiva, a princípio, a overdose sentimental pela qual envereda Florentino, numa longa correspondência amorosa com a jovem estudante Fermina Daza.
Um dos aspectos mais interessantes da obra, portanto, é a construção do sentimento entre Fermina Daza e Florentino Ariza à distância e, sobretudo, através da palavra. A valsa composta por Florentino para a sua “deusa coroada” – tocada à distância, mas num local estratégico para que o vento leve a melodia à sacada de sua amada – é uma imagem poderosa dessa distância. E os códigos da paixão e da entrega amorosa (aparições fortuitas, olhares, flores secas, cachos de cabelo) alimentam uma espera que se compraz não apenas na perspectiva de realização amorosa, mas que se delicia em si mesma.  Florentino coloca a trança colegial de Fermina Daza na parede, como um troféu ou uma insígnia religiosa, longamente contemplada e adorada.
Fermina Daza se apaixona pelas palavras de Florentino Ariza, pelo enredo de um amor proibido (que ganha ares épicos na viagem que faz, forçada pelo pai, à sua terra natal, para que ela cortasse relações com o telegrafista) e não pelo moço, em si. Tanto que, ao vê-lo a sua frente, real, palpável, tem a consciência súbita de que não o ama. Percebe o que verbaliza páginas e páginas depois: trata-se de uma sombra e não de um homem. O maravilhamento de Florentino diante da beleza de sua amada contrasta com a confusão, o constrangimento e até mesmo a repugnância que ela sente naquele momento em que os dois se encontram no mercado, depois da volta de Fermina daquela longa viagem, quase um rito de passagem que sinaliza sua mudança de menina para mulher.
A construção do amor pela palavra, portanto, é um aspecto essencial do livro. Aspecto esse que se perde, em grande parte, na adaptação do romance por Mark Newell. O filme, lançado em dezembro do ano passado, transpõe para a tela os principais acontecimentos do enredo, de forma coerente, mas não consegue transmitir os aspectos mais sensíveis e significativos da obra.
Garcia Márquez relutou muito em vender os direitos autorais de sua obra para o cinema hollywoodiano, e só o fez com a promessa de que o filme seria fiel ao romance. Não podemos dizer que não o seja. Não há, no roteiro de Ronald Harwood, cena ou episódio que não constem no livro. Porém, a velocidade de encaminhamento do enredo, no filme (em frente à longa e significativa espera amorosa que prevalece no romance), o torna uma história bastante diferente. Quem assiste ao filme não consegue, de fato, perceber a sensibilidade do livro. Os diversos símbolos da construção do amor entre os protagonistas, citados acima, e o erotismo afetuoso do livro não são aproveitados na adaptação cinematográfica.



Obviamente, qualquer adaptação cinematográfica de uma obra literária requer recortes, encaixes, e um encadeamento cênico que modificam a “velocidade” da apresentação da narrativa. Mas, no caso desse filme, em específico, isso se torna mais problemático, uma vez que a passagem do tempo é um dos temas da obra. Além disso, um outro aspecto que prejudica a abordagem do tema da passagem do tempo é o fato de que a atriz Giovanna Mezzogiorno interpreta Fermina Daza na juventude, quando adulta e idosa; já para o papel de Florentino Ariza, há dois atores: , que o interpreta na juventude e Javier Barden, que o interpreta na fase adulta e na velhice. Nesse sentido, o envelhecimento dos dois personagens não parece ocorrer de forma simétrica, causando um certo estranhamento. A interpretação dos protagonistas merece elogios, em especial a de Javier Barden, que aparece, em muitas cenas, um tanto curvado, com olhares desculposos – quase um gauche na vida, como diria Drummond.
O filme possui uma boa caracterização de época e ótima fotografia de Affonso Beato. Mas incomoda aos nossos ouvidos latino-americanos ouvir o filme num inglês com sotaque latino, quando esperávamos assistir um filme em espanhol (principalmente considerando a origem latino-americana do romance, da trilha sonora, composta pela conterrânea de Márquez, Shakira, e de boa parte do elenco).
Enfim, o filme decepciona quem espera ver Garcia Márquez nas telas. O livro, sem dúvida, é uma obra prima da literatura latino-americana, mas o filme não se enquadra na classificação de obra prima do cinema.  

Ficha Técnica
O Amor nos Tempos do Cólera
Love in the Times of Cholera EUA, 2007 - 138 min
Romance
Direção: Mike Newell
Roteiro: Ronald Harwood, baseado no livro de Gabriel García Márquez
Elenco: Javier Bardem, Giovanna Mezzogiorno, John Leguizamo, Benjamin Bratt, Catalina Sandino Moreno, Liev Schreiber, Fernanda Montenegro 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Para além do riso

Na semana passada, tive a felicidade de lançar mais um livro. É muito emocionante ver que aquela história, aqueles personagens, aquelas palavras que moravam apenas dentro da minha mente ganharem forma e passearem por aí. Na última terça, falei sobre esse processo de dar forma aos personagens, sobre a "gestação" deles e suas peripécias. Se quiser conferir, é só entrar no link:

https://www.youtube.com/watch?v=XdIEFmBS7Kk

Durante este bate-papo, foi impossível não falar de umas das questões que permeiam a obra: a violência doméstica. Porém, há outro tema relevante na vida de Jéssica não mencionado no hangout (que encerrei falando do quanto eu ainda tinha por dizer sobre o livro): o racismo. Sim, Jéssica é negra. Não, isto não está escrito na primeira página, porque este fato não determina o caráter, a personalidade de Jéssica, embora seja importante na sua identidade e, principalmente, na visão que a sociedade tem dela. Uma sociedade que, obviamente, recusa-se a enxergar-se como racista, e que, por isso mesmo, está longe de superar seus preconceitos. Como eu disse anteriormente, o que não é nomeado não existe.
Mas não estou falando sobre mais um detalhe deste livro, simplesmente. Trata-se, mais uma vez, de uma forma de lidar com aquilo que me consome: quando a realidade me cutuca, escrevo. E eis que, coincidentemente, na mesma semana em que publico um livro que aborda as tantas veladas violências, presencio uma cena que me deixou profundamente chateada, e, mais, preocupada.
Entrando em uma sala de aula, um grupo de alunos ria, gargalhava, e parei para ouvir as piadas que contavam. Nesse momento preciso da história nacional, em que um caso de racismo foi levado à justiça; em que se discute em cadeia nacional o assunto, meus alunos contavam piadas racistas. A que eu ouvi era resumidamente assim: "Um homem estava se afogando, e o salva-vidas era, assim, moreno. Aí ele pulou na água, mas quando chegou perto do homem, ele empurrou o salva-vidas e disse: - Sai, cocô." Risos, gargalhadas. E eu, pasma. Mais que pasma, ofendida. Sim, ofendida, pois embora qualquer um que olhe minha foto diga que sou branca; embora eu jamais tenha sido discriminada diretamente pela cor da minha pele, eu sou um ser humano ainda capaz de se colocar no lugar do outro, ou lutando para não perder essa habilidade, tão em falta atualmente.
Tudo o que eu consegui me perguntar foi: será que estes jovens não assistem televisão? Não estão acompanhando o que está sendo discutido na mídia? E minha pergunta mais angustiosa: será que eles realmente acham que a cor da pele de uma pessoa ser mais escura faz com que ela possa ser comparada a um cocô? Será que eles não percebem que eles chamaram os negros (detalhe: nem se referiram a eles assim; precisaram do que consideram um eufemismo) de "merda"? Será...?
Ah, essa professorinha boba que se aflige por causa de uma piada, podem pensar os pragmáticos. Eu me aflijo. Esse episódio é mais uma bofetada a nos dizer o quão distante estamos de uma sociedade mais justa e menos preconceituosa. E tenho certeza de que estes alunos não reconheceriam serem racistas. Não, imagina, eu tenho amigos negros. Há pessoas negras na minha família. Isso foi só uma piada, coisa boba... Afinal, o que tem de mais chamar alguém de macaco? Esse é o discurso cordial da maioria dos brasileiros. A minha resposta é muito simples: é "só uma piada" ou "uma coisa normal no estádio" enquanto não dói na nossa pele. É simples assim. Pense em uma criança que ouve desde pequena piadas como essa. Ela vai internalizar, mesmo que inconscientemente, que é uma merda. Ou que só faz merda. Ou que é um animal, um inferior (não foi essa a justificativa para que se usou para se escravizar o negro?). Se o leitor acha que exagero, converse com pessoas vítimas de preconceito racial (é muito fácil, todos os negros o foram, sem exceção). Converse sobre a percepção deles destas falas, destas piadas, dos olhares que eles recebem ao entrar em uma loja cara... se conseguir, pois o assunto não é fácil. É um tabu. Nesse sentido, recomendo também o vídeo abaixo, uma ótima entrevista com o rap Emicida:

https://www.youtube.com/watch?v=n7DcbOpKUw8

Espero que os leitores de "Janelas Abertas" também reflitam sobre isso a partir de algumas situações descritas no livro. Mas, mais que tudo, que essa sociedade que se julga sem preconceitos e sem tabus possa olhar com mais clareza para si própria. E que não se engane: o preconceito é perigoso. A discriminação é uma forma de desumanização, e ao olhar o outro como menos humano, autoriza-se a exploração, a violência, o extermínio. É isso que a história da humanidade nos conta. Afinal, o que tinha de mais em falar mal dos judeus? E retratá-los de forma ridícula e pejorativa nos livros destinados às crianças, na Alemanha de 1930? Todos sabemos o desfecho hediondo desta narrativa. É só trocarmos a palavra "judeu" pela palavra "mulheres" ou "negros" ou "gays" e teremos outras narrativas de violência, pois o a intolerância, o ódio e a violência andam juntos.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Abrindo Janelas

Aprendi a ler não apenas com os olhos, mas com as mãos que tocavam lentamente a capa, com dedos que apertavam levemente cada página para sentir a textura e a gramatura do papel. Tenho uma relação sensorial com os livros, tanto que, quando li pela primeira vez “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, fiquei encantada com a forma como ela descreveu a personagem com seu livro: “era uma mulher e seu amante”.
Mas até essa amante dos livros que vos fala rendeu-se às novas tecnologias. Meu novo livro, Janelas Abertas, publicado pela Editora Adonis, está sendo lançado em e-book. Passada a natural resistência ao desconhecido que habita todo ser humano, também fiquei maravilhada com as possibilidades ilimitadas: o e-book é uma janela que se abre em qualquer lugar. Não têm os limites físicos da distribuição que o livro impresso têm. Aí a escritora em seu voo imaginário pensa em seu livro chegando talvez a um leitor no Japão. Menos, Lia, diria o leitor realista... Tudo bem, foi só um voo, mas quem sabe o tempo não escancare as janelas.
E já que estamos testando novas formas de ler e se comunicar com esta juventude cada vez mais conectada, amanhã estou fazendo meu primeiro lançamento literário virtual. Por hangout, vou falar sobre Janelas Abertas, sobre como este rebento gestou-se antes de rebentar em texto; sobre as hesitações, angústias e alegrias que me trouxe... Ah, os filhos dão trabalho, sempre, mas a gente os cria para o mundo.



É engraçado falar deles, de meus livros e personagens, desta forma tão familiar – um dia destes alguém me olhou com estranheza quando falei de Jéssica, a protagonista de Janelas Abertas, como uma pessoa. Mas o fato é que a gente convive com nossos livros (e personagens) antes de escrevê-los, como bem sugeriu nosso querido Drummond em “Procura da Poesia”. E posso dizer que a convivência com Jéssica foi intensa e por vezes dolorosa. Ela é jovem, mas, em seus 17 anos, acumulou histórias de abandono, violência e privação que, infelizmente, não são tão incomuns entre as meninas brasileiras. Jéssica é um amálgama de tantas meninas e mulheres que conheci, cujas vozes foram se misturando na sua, que escreve, canta, mas que ainda não consegue gritar contra tudo o que a oprime.  
Mas não pensem que esta personagem não me trouxe alegrias. Não existe alegria mais legítima do que abrir janelas em paredes que pareciam esmagar-nos. Jéssica saiu do quarto apertado e escuro da sua infância. Ela caminhou pelas ruas de Campinas. Ela descobriu um caderno verde, poemas de Cecília Meireles, amizades fieis. Ela ainda não sabe tanta coisa sobre si mesma e sobre seu passado, o mundo ainda parece muito hostil para uma garota como ela. Mas não é que a menina nos surpreende, no final?

Espero que o diálogo com Jéssica (que nem sempre é tranquilo) também abra aos leitores as janelas da indignação, da perplexidade e também da esperança e da alegria. Porque Jéssica, assim como eu, tem essa alegria teimosa: de ser alegre de propósito, só de pirraça, nesse mundão de tanta tristeza.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ventos de agosto

Setembro começa cinzento e com chuva. Como a dizer que agosto terminou, mas a primavera ainda está longe. Teremos de padecer um pouco mais até as flores chegarem - não só aos jardins, mas às nossas relações. Agosto me fez pensar muito em como deixamos os espinhos se sobreporem às pétalas nas nossas conversas diárias. Em como conviver tem sido o maior desafio da humanidade, com pessoas que se ouvem cada vez menos e que gritam cada vez mais. Neste último mês, vivi situações em que constatei, mais uma vez, a dificuldade e até incapacidade de se ficar em silêncio. Silenciar é difícil... E ouvir o outro e a si mesmo requer silêncio.
Mas ontem, último dia de agosto, a chuva chegou na noite e as gotas graúdas amansaram meu coração. O vento era forte e pedi a ele que levasse embora o stress, a raiva, as decepções de agosto, esse mês que parecia não ter fim. E eis que joguei ao vento estes versos:

Ventos de agosto
Levem as lástimas
Deixem cair as sementes
Para que setembro floresça
E minh'alma sonolenta
Possa tomar um sol de manhã
Um ar de primavera frágil
Um gole de esperança instável. 


Que setembro nos traga mais chuvas, que elas lavem e levem tudo o que pesa, que aflige, que não deve ser guardado...

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Tenho sonhado com estradas

Tenho sonhado com estradas
só o vento limpa as remelas da inércia
sol de madrugada resiste em não nascer
parto longo tingindo o céu ainda não anil
pés descalços no traço 
ébrio de paralelepípedos
meus olhos cegos às placas
coração ritmando a caminhada
pulmões cheios de desejo
de nunca mais voltar
e nunca mais chegar.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sociedade dos poetas vivos


Neste último sábado, a sala Carlos Gomes da Livraria Saraiva, em Campinas, foi sacudida por calorosa discussão, na 3ª edição do Projeto 1001 Leituras. O poeta, ficcionista e dramaturgo premiado, Marco Catalão (autor de livros como Cânone Acidental, A face neutra e Agro Negócio) chegava com uma afirmação polêmica: a de que não existe, na literatura ou em qualquer outra arte, o talento inato. Afirmação às vezes incômoda para uma sociedade que, influenciada pelos ideais cristãos (sobretudos protestantes), e mais recentemente, pela ideologia estadunidense (propagada à exaustão pelo cinema hollywoodiano), espera pelos eleitos: aqueles que teriam sido agraciados com o dom. Ou, em uma linguagem menos mítica, os que nasceram mais inteligentes ou com mais aptidão que a maioria para determinadas atividades ou áreas do conhecimento ou da arte.
Catalão afirma categoricamente que não existem eleitos, e sim, pessoas que foram expostas a determinadas condições que favoreceram seu aprendizado, sua pesquisa, sua assimilação tão profunda de um conhecimento ou linguagem a ponto de se tornar um especialista, um campeão, um vencedor de prêmio Nobel. Obviamente, a afirmação gera questionamentos: se qualquer um pode ser um escritor, artista ou cientista por ter sido exposto a tais condições, por que então alguns se destacam? O poeta, também doutor em Letras pela Unicamp, atribui isto às diferenças individuais: não somos todos iguais e não reagiríamos da mesma forma aos mesmos estímulos. Não se trata de determinismo, não somos meros joguetes do meio. Mas sem ele, jamais desenvolveríamos qualquer talento, ele afirma com convicção.
Concordar ou não com estas afirmações não vem ao caso: o que nos interessa é onde Marco pretende chegar em sua tentativa de desconstruir um valor tão arraigado em nossa sociedade. Voltando seu discurso exclusivamente para a criação literária, ele aponta uma das consequências da crença no talento inato: o não investimento na formação do escritor. Afinal, se alguém nasce com o talento, não é preciso passar horas lendo e discutindo textos literários, nem dias e dias escrevendo e reescrevendo textos, nem conhecendo seus pares e o que eles escrevem e publicam. Para Catalão, seria esse o empecilho para que chegássemos a um nível internacional de excelência e reconhecimento na literatura, conforme aconteceu há pouco com a matemática, com a nomeação de Arthur Ávila para a Medalha Fields.
Os que não foram perderam uma acirrada discussão sobre a necessidade ou não de estudos (sejam de natureza teórica ou prática) de forma institucionalizada para a formação de um escritor, haja vista que tantos bons escritores brasileiros constituíram suas obras sem um estudo institucionalizado e muitas vezes conciliando a atividade criativa com outras atividades profissionais. O que importa, de fato, não são as conclusões às quais chegamos, mas a pergunta lançada, o incômodo da indagação.
Toda mudança começa com um incômodo - e é sobre ele que quero falar, na esperança de que algo mude. A fala de Catalão me provoca dúvidas, mas também algumas luzes. Como escritora e, sobretudo, como professora de literatura, estou sempre refletindo em como as pessoas concebem e consomem a literatura, e um fato nas últimas semanas me fez voltar a imagens e ideias já visitadas: a morte, há cerca de uma semana, do ator Robin Williams. Um dos papéis mais famosos deste ator é o de um professor de literatura, no filme Sociedade dos poetas mortos. Assisti a este filme, muito famoso nos final dos anos 80 e começo dos 90, aos 12 anos. Estava começando a escrever meus primeiros versos. O filme me encantou, como a muitos da minha geração, que colocaram algumas suas cenas no Facebook em homenagem póstuma ao ator.
Neste filme, o professor entusiasta procura levar seus alunos a perceberem que a literatura não é algo a ser estudado com gráficos, mas algo a ser sentido intensamente, quase visceralmente. Se durante a adolescência esse filme representou minhas próprias ideias sobre a literatura, eu que delirava com a então recente descoberta pessoal de Castro Alves, Manuel Bandeira e Emily Dickinson, depois de me tornar professora e escritora, comecei a vê-lo com outros olhos. A pensá-lo em suas entrelinhas, nas quais vejo algumas ideias questionáveis sobre a literatura e seu ensino. A pensar que precisa existir um meio termo entre o gráfico e as vísceras.
Sim, literatura é arte, e enquanto arte, constrói-se por caminhos marcados pela subjetividade. Em outro post deste blog, eu afirmo que escrevemos para iludir o tempo, para driblar a morte. Já escrevi por diversão, já escrevi por amor, já escrevi por exasperação, por raiva e por vingança. Quem me leu, lê e lerá, sentirá tudo isto? Não sei - o espaço interativo da leitura também é marcado por subjetividades. Mas uma coisa eu posso afirmar com certeza: não foram meus sentimentos que foram escritos sobre o papel. Como disse o poeta Drummond, em "Procura da Poesia":

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


O que escrevi foram palavras. E foi o longo aprendizado das palavras, a longa convivência com a palavra escrita e literária que fez com que eu me tornasse escritora. Talvez se, desde minha infância, eu tivesse feito aulas de balé, eu seria bailarina, eu materializaria algo destes sentimentos no movimento e não na palavra.
Mas, neste filme, este professor de literatura apresenta-a como mera emoção condensada. É memorável, para mim, uma cena em que o professor incita um dos alunos, que não tinha feito a tarefa de escrever um poema, a compô-lo instantaneamente, de olhos fechados. Segue-se uma espécie de transe em que o garoto declama uma torrente de palavras poéticas. O poema surge, brota magicamente, lindo, perfeito, surreal. Porque já estava ali, no ser que o profere, aparentemente, desde sempre.
Isso seria possível? Talvez. Já tive a felicidade de escrever um poema em um momento que poderia ser chamado de "inspiração". Um momento em que as palavras vieram e as escrevi como vieram e daí surgiu aquele que considero um dos meus melhores poemas, "Mnemoteca". Mas ele não surgiu magicamente na minha mente quando eu tinha 12 anos, mas praticamente aos 30, quando eu já havia acumulado quase duas décadas de leituras e de escrita de textos literários. O que parece um "transe" pode ser visto como um transbordamento de uma linguagem internalizada, com a qual convivi de tal forma que ela passou a fazer parte da minha identidade.
Lembrei-me num flash da cena fílmica que descrevi acima, quando Catalão, em sua palestra, falou das consequências da ideia do talento inato no ensino de literatura, no qual privilegiamos os autores canônicos e os reverenciamos como se eles tivessem produzido toda sua obra em um transe, e não em um processo repleto de questionamentos, hesitações, tentativas e erros. Assim, não damos espaço aos escritores contemporâneos, que estão em processo. E assim reforçamos a imagem da literatura como algo distante, restrito a poucos iluminados, portanto inacessível a nossos alunos. E, por conseguinte, desinteressante à maioria.
Voltei para casa com a sensação de que urge formarmos a sociedade dos poetas vivos.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Todo mundo tem a sua cachaça



Sabe aqueles quadros compartilhados à exaustão no Facebook, que colocam “Como meus amigos me veem”, “Como minha família me vê”, “Como eu me vejo” para várias profissões ou situações? Fiquei pensando em como seria um quadro destes que retratasse o escritor.
Há reações diversas quando declaramos para alguém sermos escritores, mas frequentemente ocorre uma certa perplexidade – para não dizer mesmo que alguns se sentem diante de um E.T.. Às vezes, percebe-se alguma deferência: as pessoas nos parabenizam, e não raro falam que gostam de ler, ou sobre a importância da leitura, mas se esquivam delicadamente quando  mostramos um exemplar do livro, com medo de que sejam obrigados a comprá-lo.
Outra reação comum é um olhar de piedade, de complacência, como se dissesse “Puxa, coitado de você que sonha em viver de literatura”. Foi esse o olhar de um professor de ensino médio, quando eu lhe disse, um dia, que eu escrevia poemas e queria ser escritora. Não contente com o olhar e para não deixar dúvidas, ele completou: “Você tem vocação para faquir?”.
Frequentemente, também escuto, ao dizer que sou escritora: “Que legal! Eu faço oficina de origami e dança de salão.” E então você delicadamente explica que não se trata de um hobby, de um passatempo. Nos últimos meses, fui chamada a dar palestras para jovens e professores e uma pergunta que apareceu bastante foi: “Além de escrever, você trabalha?” E as pessoas perguntam isso a sério, porque no imaginário geral da nação, escrever não é um trabalho, nem ser escritor é profissão.
E na contramão deste pensamento, estão aquelas pessoas que acham que você está ganhando muito dinheiro. Aquelas que acham o livro uma fortuna, mas não pensam que, para que ele chegue à estante da livraria, além do escritor, várias pessoas trabalharam: o editor, o ilustrador, o diagramador, o revisor, funcionários da gráfica, o divulgador, o distribuidor, o vendedor... Aquelas que reclamam que seu livro está muito caro, mas que gastam o dobro sem reclamar para comprar qualquer outra coisa. Isso quando elas não pedem um livro de graça, sem pensar que o autor, muitas vezes, está pagando para trabalhar, pois, além de escrever seu livro, custeou sua edição do próprio bolso. Ou, se não o fez, não está ganhando mais do que alguns centavos por exemplar vendido.
E para terminar com a “pureza das respostas das crianças”, uma vez eu estava fazendo contação de histórias em uma escola, e um menino me perguntou se eu estava ganhando bastante dinheiro com o meu livro. Eu disse: “Não, apenas escritores que são celebridades e vendem muitos livros conseguem realmente se sustentar com isso”. Ele me olhou estupefato e disse: “Uai, então por que você escreve livro?”.
Essa é uma pergunta que eu já me fiz muitas vezes. Diante da pouca valorização do escritor pela sociedade (e não me venham com aquele blábláblá de que você valoriza o escritor se você vai ao lançamento do livro, mas não compra porque vai tentar fazer o download de graça depois); diante da dificuldade de publicar em um mercado editorial que frequentemente vai pensar primeiro na vendagem do livro e depois na sua qualidade artística; diante da aventura de ter que conciliar a criação e a escrita com tantos outros afazeres que pagam as minhas contas, eu já me questionei em por que continuar escrevendo.

Mas não parei. E só Drummond conseguiu me dar uma resposta. É que meu verso (ou minha crônica, meu conto, meu romance) é minha cachaça. E todo mundo tem a sua cachaça.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Havemos de amanhecer?

Já escrevi neste blog que quando a realidade me cutuca, eu preciso escrever. Mas tem dias que a realidade me esmaga - o peso da fatalidade, o fato consumado que repete o que parece não mudar nunca... É assim que eu tenho me sentido todas as vezes que leio as notícias sobre os conflitos entre Israel e a Palestina, ou melhor dizendo, sobre o massacre cruel que Israel está comandando sobre uma população indefesa.
Há dias tenho pensado e tentado escrever sobre isso, mas foi em uma sala de aula que consegui partilhar minhas ideias e angústias sobre o assunto. Ser professora me dá muitas oportunidades - não apenas de falar de literatura, de partilhar meu conhecimento sobre algo que é tão vital para mim, mas sobretudo de ter o consolo de, através de versos e poemas lidos e compartilhados, encontrar ao menos um alívio para as minhas tantas indagações.
Na semana passada, eu estava no 3º ano do Colégio Dom Barreto e começamos a ler Drummond, mais especificamente os poemas de "Sentimento do Mundo" e "A Rosa do Povo". E de repente, o espanto: não parecia que o poeta mineiro escrevia em meados da década de 40. Quando comecei a declamar "A noite dissolve os homens", quase pude imaginar o risco das palavras no papel naquele exato momento:

A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...

O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.


Pensei nas imagens vistas no dia anterior, de crianças palestinas mortas, de hospitais e escolas bombardeados. A noite cai, tremenda, sem esperança, neste exato momento. A noite, a escuridão da violência, do ódio, da intolerância dissolve os homens, dissolve sua humanidade e não se vê mais irmãos - são todos inimigos. Uma noite completa e sem reticências - apenas um ponto que finaliza tudo, que inutiliza até o sofrimento. Os suicidas têm razão.
Senti que muitos alunos se deixavam levar pelo peso das palavras, pela minha voz também pesada. E interrompi a leitura do poema e perguntei a eles: "Não parece que a humanidade anda em círculos"?
Alguns assentiram imediatamente com a cabeça, outros me dirigiram os olhos interrogativos. Então expus meu pensamento: quando Drummond escreveu estes versos, a noite caía especialmente sobre a comunidade judaica. Milhares de judeus indefesos foram mortos no maior genocídio da história. E agora, décadas depois, a nação criada para eles no pós Segunda Guerra Mundial, como forma de indenizar tantos sofrimentos, é que comanda o genocídio. Sim, genocídio, esta palavra assustadora, tenebrosa. Ontem, vítimas; hoje, algozes. Mas independente de nacionalidades ou orientações religiosas (não é este o ponto da reflexão), parece-me que a humanidade tem sempre girado nesta roda-viva, em que alternam-se vítimas e algozes, mas eles sempre existem, reproduzindo eternamente a violência extrema de que o ser humano é capaz.
Aí eu percebi o desalento no olhar de alguns, a perplexidade no de outros, em um silêncio raro nas salas de aula atuais. Aí senti que era o momento de terminar minha leitura:


Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
Os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...

Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para cobrir tuas pálidas faces, Aurora.


Eu me envolvi tanto na declamação destes versos que não me contive e, em um gesto espontâneo, abracei o livro que tinha nas mãos e disse: "Obrigada, Drummond". Alguns alunos sorriram, aquele riso complacente de aluno que acha a professora louca. Mas foi essa a minha reação mais sincera, agradecer ao poeta que me convidava a acreditar na  Aurora, ainda que seja tímida e inexperiente. Perguntei aos alunos o que eles pensavam sobre esta segunda estrofe, e muitos citaram palavras como "fim da guerra", "esperança", "reconciliação entre os povos". 
O mais bonito, para mim, é que Drummond não faz uma oposição entre a noite e o dia. Ele sabia que o dia e sua claridade, sua alegria, sua certeza ainda estavam distantes. Mas ele fala da aurora, essa promessa da manhã de paz que se estende sobre o mundo. Uma aurora que transforma o sangue da violência no tom rubro do céu que anuncia a chegada do sol. Uma aurora em que a fadiga cessa, em que o perdão e sua maciez se concretizam nas mãos que se enlaçam. 
Obrigada, Drummond! É tudo que sei dizer. Minha carne também estremece na certeza da vinda desta aurora, embora a manhã tarde há tantas décadas, talvez desde sempre. E esta demora muitas vezes me faz estremecer na dúvida: havemos mesmo de amanhecer? 

sexta-feira, 25 de julho de 2014

"Eles passarão, eu passarinho"

Última semana de julho - despedida das férias escolares, um novo semestre que chega já com os cansaços acumulados do primeiro, especialmente porque a palavra férias, para a maioria dos professores, não deixa de ser entre aspas... Eu mesma, neste mês, li, pensei, escrevi, e nesta semana, lá estava entre tantos professores no COLE - o Congresso de Leitura do Brasil, que ocorre na Unicamp bienalmente. Um evento querido, que sempre renova minhas energias e esperanças na docência ao ver tantos professores inquietos, relatando suas experiências, projetos, dúvidas e angústias, mas também seus muitos acertos e delícias nessa aventura que é formar leitores na realidade contemporânea.
Mas algo singular marcou o COLE deste ano de 2014: a despedida de autores reconhecidos e queridos. Atipicamente, a Academia Brasileira de Letras está com 3 cadeiras vagas: Ivan Junqueira, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna deixaram este mundo - ou como melhor diria um outro acadêmico famoso, Guimarães Rosa, encantaram-se - nos últimos dois meses. Rubem Alves, falecido no último fim de semana, foi lembrado e reverenciado pelos poetas e amigos Severino Antônio, Régis de Morais e Carlos Brandão. E algo mais especial ainda, para mim, foi minha primeira participação neste evento como escritora.
Além do privilégio de lançar meu livro Embaixo da cama em Campinas, ao lado dos já referidos poetas, de Margareth Park e Tarcísio Bregalda, no dia 23/07, ontem, no dia 24, pela manhã, tive a oportunidade de conversar com o público e contar histórias. Foi um momento muito especial para mim. Comecei, como os poetas no dia anterior, com uma homenagem, mas não para estes escritores que morreram nestes últimos meses. Eu quis homenagear uma contadora de histórias bem menos famosa e muito importante para minha formação: minha avó, Júlia Silvério Correia. Neste mesmo blog, eu já escrevi sobre sua influência sobre meu amor pelas histórias numa crônica denominada "Meu primeiro aprendizado da poesia", lida ontem no COLE.
Tenho em minha sala um daguerreótipo dos meus avós maternos. Para quem não sabe, trata-se daqueles retratos antigos, geralmente colocados em molduras ovais, que eram retocados depois pelo retratista, para inserir cores, e que ficavam com uma coloração meio cinza, meio azulada, muito peculiar. Se minha avó estivesse viva, teria completado, nesta semana, 110 anos. Há 20 anos ela encantou-se. Mas olho sempre para aquele retrato na minha parede, às vezes buscando a coragem que me falta, às vezes imaginando seu olhar de aprovação às minhas lutas e muitas vezes com gratidão. Por ela ter gerado minha mãe e indiretamente, a mim. E por ela ter nos alimentado. Não apenas com o caldo de fubá com couve, os bolinhos de polvilho, os bolos de caçarola - mas por ter nos alimentado com a poesia tão cotidiana das colchas de retalho, dos pontos de crochê e das histórias que ela contava. Minha avó Júlia, minhas tias Teresa, Maria e Manuela me ensinaram a ouvir histórias, e assim ler um pouquinho esse bicho estranho e fascinante que é o ser humano. Por que é isso que está por trás das histórias, sejam elas cantadas, contadas ou escritas; sejam elas boas ou ruins; famosas ou anônimas.
Escrevemos porque somos humanos e porque transbordamos pela palavra. Às vezes, nos bancos das universidades, envergonhamo-nos desta verdade porque nos parece piegas e pouco científica. Queremos nos convencer talvez que a literatura é nosso objeto. Talvez seja para quem não a tem nas entranhas, para quem apenas a analisa e não a vivencia em seu modo de dizer-se e dizer o mundo.
Escrevemos porque nossa humanidade nos faz limitados, e transbordar-se pela palavra talvez nos engrandeça, talvez nos ajude na ilusão que permaneceremos. Júlia, Manuela, Maria e Teresa estão mortas, mas suas histórias - e até o timbre de suas vozes - ecoam no meu pensamento. Rubem, João, Ivan, Ariano (e agora seus sobrenomes não lhes valem, nem quaisquer outras convenções deste mundo) também, mas seus tantos versos, e contos e causos ficarão ecoando no pensamento de alguém, voando por este mundo... Pois como disse outro poeta já falecido, Mário Quintana, "eles passarão, eu passarinho".
Não consigo imaginar o voo que não seja pela palavra.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O maravilhoso-terrível: a maternidade

Não, meu texto não está atrasado. Eu propositadamente deixei passar o chamado Dia das Mães para escrever este texto. Deixei passar o afã da data, os comerciais fofos e todo o apelo comercial para escrever estas ideias que rumino há muito tempo.
Primeiramente porque não deveria ser preciso um dia no calendário para que a gente se lembrasse de expressar gratidão, admiração e afeto; mas, atualmente, infelizmente, tem sido assim para todos nós. E o pior, como temos consciência disso, a indústria e o comércio não deixam de explorar nossa culpa. A mensagem subentendida em muitas propagandas é: "como você não tem tempo para estar com sua mãe o quanto deveria, dê um grande presente para demonstrar o quanto você a ama" - pois nessa sociedade em que números valem tanto, é necessário quantificar o amor. E lembro-me de uma crônica do Veríssimo que coloca de forma hilária este aspecto: "O dia da amante". No início do conto, considerando os lucros do Natal, mas lamentando haver apenas um Jesus Cristo, um grupo de comerciantes resolve criar o Dia das Mães - afinal, quem se oporia? Ser contra o Dia das Mães seria ser contra a própria Mãe, com maiúsculo mesmo, ou seja, contra essa "instituição"!
Mais do que refletir sobre os apelos comerciais dos "Dias do/da ...", eu quero mesmo é falar da "instituição".  Perceba que a palavra instituição, embora sonoramente semelhante, é diferente de instinto. Portanto, a expressão instinto materno revela uma visão da maternidade que me parece equivocada: a ideia de que toda mulher quer ser mãe porque isso faz parte da natureza, é um instinto da fêmea. Se analisarmos os seres humanos como animais que somos, podemos pensar no instinto de procriação, pela necessidade de toda espécie de se perpetuar, mas não necessariamente de ser mãe - o que excede a biologia e se configura em um papel social, construído através da tempo e variável conforme a sociedade, o período histórico, etc.
Desculpem-me, leitores, especialmente leitoras, se esta afirmação é chocante para vocês. Eu entendo, afinal, somos educadas para acreditar que a maternidade é nosso destino natural, se não o essencial. Que sem filhos uma mulher não é completa. E, em uma visão cristã, que lhe estabelece uma "aura de santidade", a mãe é aquela que é só amor, perdão, abnegação: tudo suporta, tudo entrega, nunca pensa em si mesma e sorri com tudo isso. E para terminar essa lista: no imaginário geral, a mãe é vista como um ser assexuado - sua sexualidade já cumpriu sua principal função que é procriar, e sua sensualidade deve ficar oculta, até mesmo porque agora ela tem esse papel de "santa". Mas as mães não são (e talvez não devam) ser assim.
Não quero, com estas afirmações, negar a generosidade, o altruísmo, a responsabilidade que uma mãe (assim como um pai) deve ter para com seus filhos. E isso requer algumas renúncias, obviamente, pois crianças precisam daquilo de que hoje muitos de nós menos dispõem: nosso tempo e nossa atenção. Mas a minha análise discute exatamente o que, na minha visão, oprime as mulheres e as impede de curtirem mais a condição de mães: a idealização da maternidade como a melhor experiência da vida de uma mulher, e da mãe como esse ser sobre humano que descrevi acima. Quantas mulheres não caem nessa armadilha? Diante das propagandas, filmes, novelas que mostram mães embevecidas com bebês bonitos, saudáveis, carinhosos e sorridentes; diante de depoimentos comovidos sobre "ser mãe é a melhor coisa do mundo", algumas mulheres engravidam sem refletir no quanto, a partir deste momento, a sociedade lhe cobrará, quantos problemas ela vai ter que enfrentar e quantos momentos de conflito vai viver na construção de uma relação com esse outro ser que virá dela. Sim, construção, pois, contrariando a ideia de que uma mãe conhece seu filho desde que ele foi concebido, esse ser que habita seu ventre por nove meses é um ser diferente, com desejos, necessidades, personalidade próprios. Quanto mais ele cresce, mais isso se evidencia.
E muito além dos sofrimentos físicos das mães (o bombardeio de hormônios, o parto, a amamentação), há a já referida cobrança. Pois a mãe de verdade, a mãe com M maiúsculo eram as de antigamente, as que viviam para o lar. Antes que os leitores me acusem de exagero, pensem em quantas vezes, em conversas cotidianas e informais, se menciona o fato de tal criança estar aprontando muito, ou estar indo mal na escola, porque a mãe trabalha fora e, portanto, não dispensa o tempo necessário para educar, corrigir, orientar o filho. Percebam: raramente se fala que é o pai que não cumpre seu papel. Por quê? Porque ainda reina na mentalidade das pessoas que esse papel é da mulher. Nunca se exigiu de pais que renunciassem sua vida profissional e social para cuidar dos filhos. Sua obrigação era apenas prover. Hoje, a maioria dos lares brasileiros têm uma mulher como provedora. Mas, se observamos nas últimas décadas essa mudança do papel da mulher na família, o contrário não se observa: no geral, pais não passaram a ser mais responsáveis pelos trabalhos domésticos e pela educação dos filhos já que eles não são mais os únicos provedores da família. Há, sim, homens que assumem estes papéis, mas curiosamente, eles são aplaudidos como os maridos "que ajudam as esposas" - ou seja, o verbo revela que a responsabilidade continua sendo delas: o homem apenas ajuda por generosidade.
A mulher que não renuncia de seus interesses acadêmicos, profissionais e pessoais paga um preço alto por isso - não apenas a cobrança da sociedade, da mídia, da família, mas de si mesma. É nesse ponto que eu afirmo que a idealização da maternidade evita uma vivência feliz da mesma. A mulher que estuda, trabalha ou mantém atividades que não se relacionam com seus filhos diretamente sente culpa, pois, afinal, ela aprendeu e internalizou que deveria ser a mãe perfeita. Ainda que não pense isso conscientemente, ela se pergunta o tempo todo se é uma boa mãe, se o que faz é suficiente e correto para que seu filho seja saudável e feliz. Essas mulheres se exigem muito, e exatamente por não terem optado pela maternidade como full time job (considerando ainda que muitas nem tem essa opção, pois precisam de dinheiro para sustentar seus filhos), precisam provar para elas mesmas e para a sociedade que são boas mães e que fizeram a escolha certa. Isso gera uma ansiedade enorme, e também grandes doses de frustração, pois nem maridos, nem filhos, nem mães são perfeitos. São simplesmente humanos. E o dia a dia das famílias vai muito além daquele divertido comercial de margarina.
Além disso, há ainda outro ponto da idealização das mães que me incomoda: a não percepção de seu papel de opressão em relação às suas próprias filhas, de seu papel de omissão em relação a seus próprios filhos e, consequentemente, em seu papel fundamental na manutenção de uma sociedade androcêntrica e violenta para com as mulheres. É bizarro, mas muito comum, ouvir mães repetindo que dois filhos foram "criados igualzinho, mas são tão diferentes!". Bizarro porque relações interpessoais são únicas - ou seja, a relação que eu tenho com uma pessoa nunca será igual à que eu tenho com outra, pois as afinidades, os sentimentos, as rixas, as relações de poder são únicas em cada relação. Mas quando estas pessoas são filhos, e de sexos diferentes, as diferenças em sua educação, no Brasil, são muito visíveis. Já vi pessoas comemorando por estarem grávidas "de menino" ou frustradas por não estarem; outras falando "Que sorte!" para mães que só têm filhos homens. Já presenciei mães mandando filhas limparem a bagunça que seus irmãos fizeram, enquanto justificavam que "menino é assim mesmo, é mais bagunceiro, né?". Já ouvi mães dizendo para as filhas "se darem ao respeito" e até condenando sua sensualidade, enquanto sorriam ao ouvir que seus filhos eram "terríveis", que "não perdoavam uma", que "pegavam todas as meninas da escola" e pior, já vi mães culparem as namoradas dos seus filhos quando havia uma gravidez precoce, afinal, "como ela não se cuidou?" ou "ela fez de propósito para acabar com a vida do meu filho".
São tantos os exemplos que eu ficaria horas aqui escrevendo essas cenas que parecem do século XIX, mas que acontecem agora, quiçá neste momento em que escrevo. E volto à minha questão: essa diferença de tratamento entre meninos e meninas por suas próprias famílias ensina, nas entrelinhas, o valor de cada um na sociedade, mantendo a baixa auto-estima das meninas, que um dia serão mulheres e, talvez, mães. E que provavelmente, como mães, vão perpetuar essa visão depreciativa das mulheres e sua opressão. Recentemente, em conversa com uma amiga, ela me disse que, quando sua mãe faleceu, ela viu no caixão uma mulher real, enquanto que, para seus irmãos, havia morrido uma santa. E eu desconfio que isso não é prioridade da família dela: conheço homens inteligentes que estudam, leem e analisam criticamente tudo, mas são incapazes de fazer uma reflexão racional sobre suas mães, especialmente sobre como eles foram (e são) tratados de forma tão mais amorosa e benevolente por suas mães do que suas irmãs.
Freud, misógino que era, falava da necessidade de matar o pai simbolicamente em um processo de desenvolvimento saudável, na passagem para a fase adulta. Ele não percebeu talvez que, especialmente para nós mulheres, é mais difícil e importante matar a mãe. E isso não significa não amá-la, não reconhecer sua generosidade, suas renúncias, seus ensinamentos, seu amor. Ao contrário: é perceber que na sua humanidade, e na fragilidade inerente a essa condição, ela significou e significa muito, para o que há de melhor e de pior em nós. É preciso que uma mulher mate o machismo, a subserviência, as neuroses, a depreciação do ser mulher que provavelmente sua mãe, indiretamente, ensinou-lhe. E sobretudo, matar a idealização da maternidade, que impede tantas mulheres de viverem algo tão maravilhoso, mas tão terrível, com mais leveza, mais alegria, e menos culpa. Para que o primeiro adjetivo seja mais forte que o segundo.