quinta-feira, 26 de abril de 2012

Arthur Azevedo vivinho da silva

Neste fim de semana, 29/04, no Teatro Centro Kennedy, os atores Felipe Hintze, Flora Fernanda e Adriane Hintze estreiam o espetáculo Amor por Anexins, de Arthur Azevedo, sob direção de Adilson Azevedo (recentemente elogiado pela revista Bravo pelo espetáculo 17 vezes Nélson, que esteve em cartaz em São Paulo no mês de março). E é claro que eu tinha que divulgar isso começando o texto com um anexim, ou seja, com um dito ou expressão popular. Mas para além dos efeitos de estilo, o uso do "vivinho da silva" se justifica pelo fato de Arthur Azevedo estar realmente vivo, mais de 100 anos depois do lançamento de suas peças.




Engana-se o leitor se pensa que verá um espetáculo cheirando a poeira, com frases longas e cansativas. O texto de Arthur Azevedo, que viveu entre a segunda metade do século XIX e a primeira década do século XX, é ágil e capta nossa atenção de espectadores do século XXI. Inclusive, podemos afirmar que Arthur Azevedo criou um teatro popular no Rio de Janeiro de seu tempo, para escândalo de intelectuais que defendiam uma dramaturgia literária, isto é, peças com textos maiores e literariamente sofisticados. Paralelamente ao Teatro Municipal, com suas óperas e tragédias, e ao Teatro Ginásio Dramático, com suas comédias realistas de inspiração francesa, a casa de espetáculos Alcazar surgiu, no final do século XIX, para abrigar gêneros populares de teatro, que intercalam cenas curtas, em linguagem simples, a números de canto e dança. A esse teatro renegado pelas elites intelectuais se dedicou Arthur Azevedo, que se tornou célebre por suas operetas e pelo teatro de revista. Esses gêneros alineares, formados por uma sucessão de quadros cênicos, explorando quiproquós e linguagem de duplo sentido, influenciaram muito a formação do nosso humor televisivo (o recém falecido Chico Anísio que o diga!).
Amor por anexins é a primeira peça deste jornalista, dramaturgo e poeta, escrita e encenada pela primeira vez, provavelmente, em 1872, ainda em Recife, antes da vinda do autor ao Rio de Janeiro. A trama apresenta Isaías, um velho homem apaixonado por Inês, viúva, mas ainda jovem e desejosa de contrair segundas núpcias. Entretanto, incomoda-lhe o fato de Isaías falar sempre por anexins: em cada frase que ele fala ou escreve, sempre está presente um provérbio, quando ele não se comunica exclusivamente pela colagem de meia dúzia deles. O apego do personagem aos anexins é tamanho que podemos supor, no título da peça, uma ambiguidade: não apenas o diálogo amoroso através deles, mas o amor do personagem aos próprios anexins, que acabam por se tornar uma marca de sua identidade.
Tal colagem de ditos populares produz efeitos cômicos interessantes, especialmente no contexto da conquista amorosa. Vale a pena conferir, afinal, um texto teatral encenado é muito mais interessante do que lido. Além do que, os leitores estarão prestigiando a vida cultural de nossa cidade. Ouço tantas pessoas reclamarem da precária vida cultural de Campinas (infelizmente, não posso discordar delas), mas vejo mais ainda pessoas que não prestigiam os eventos culturais que ocorrem aqui. O apoio do público da cidade é fundamental para que possamos reverter esse quadro lamentável. Desde já cumprimento os atores pela iniciativa, pela gana de continuar fazendo teatro nessa cidade tão ingrata com seus atores. E vou cumprimentá-los pessoalmente também, é claro!
Espero vocês lá!

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Tentação

Hoje a poesia está me perseguindo. Ronda a minha mesa, sedutoramente, sussurando palavras no meu ouvido:


Tentação

A poesia
só me visita
quando trabalho.

Não lhe interessa chegar
quando preguiçoso permito
o tempo passar sem motivo.

Como amante caprichosa
ela chega sem avisos
e me afasta de obrigações.

Planilhas e pastas
espalham-se discretamente
como senhoras burocráticas.

E não a convido a sentar
em meio a seres tão sisudos:
fujo a seu chamado.

Mas versos se insinuam
entre números e tratados
como sol sereno
de tarde de inverno.
Não resisto mais
nem sequer o terno
a gravata,
o computador
o telefone
Importam mais.

A imagem emoldurada da janela
e a letra manuscrita sobre o papel
tomam o espaço
e derrubam as paredes.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Suporta-se com paciência a cólica da próxima

O dia 12 de abril de 2012 deverá ficar marcado no calendário das conquistas dos direitos das mulheres neste país: ontem, depois de 8 anos em tramitação na justiça, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo deixou de ser considerado como aborto e, portanto, como crime. A decisão obteve 8 votos a favor e 2 votos contra, no STF.
Particularmente, considero muito fácil compreender o quanto essa decisão é justa, já que livra mulheres do que pode ser considerado uma tortura. Os incômodos e sacrifícios de uma gravidez são suportados por uma mulher como sacrifício em prol de outra vida, acalentado pela esperança de ver nascer o filho (quando desejado, obviamente). Exigir de uma mulher que carregue em seu ventre, durante nove meses, com os riscos inerentes de qualquer gravidez, um ser fadado à morte é torturá-la. Como bem disse o ministro Ayres Brito, isso seria martírio, e martírios são voluntários. Não devem ser impostos por lei.
E por falar nas declarações dos ministros ao justificarem seus votos contra ou a favor, chama a atenção uma outra frase do próprio Brito: se os homens engravidassem, a interrupção da gestação de fetos anencéfalos estaria autorizada "desde sempre". Ela me remete ao famoso dito popular "Pimenta nos olhos dos outros é refresco". Ou como diria Brás Cubas, de forma mais sofisticada, "Suporta-se com paciência a cólica do próximo". Neste caso, da próxima: considerando que a maioria dos legisladores são homens, era simples que eles exigissem que as mulheres se sacrificassem e levassem adiante a gestação de um feto praticamente natimorto, o que certamente gera danos emocionais indeléveis. Não doía no corpo deles. Talvez isso também explique, ao lado das crenças androcêntricas e cristãs arraigadas em nossa sociedade, a morosidade que envolve qualquer votação que envolva questões relacionadas à descriminalização do aborto.
Mas os leitores podem alegar que muitas mulheres são contra a decisão do STF; que muitas delas se deslocaram à Brasília para fazer passeatas, protestos, sem falar daquelas que, em suas comunidades e pela internet, fizeram inumeráveis petições públicas e abaixo-assinados em repúdio à possibilidade da "legalização do aborto de anencéfalos" - expressão que por si já expressa a visão destas pessoas sobre o caso. Respeito essas mulheres heroicas, a maioria religiosas, que acham que levar a gravidez até o fim é um destino, é uma missão. Elas têm o direito de pensar e vivenciar isso, bem como defender publicamente suas posturas. Entretanto, como vivemos num Estado laico e democrático (ao menos na teoria), elas não podem, por conta de suas crenças, impedir que outras mulheres tomem uma outra decisão, a fim de pouparem-se, a si e a suas famílias, de um grande sofrimento.
Mas os grupos religiosos não têm voz apenas fora do Congresso Nacional, ou do próprio STF - eles se fazem ouvir dentro destas instituições (e de forma que julgo cada vez mais perigosa). Não reforço o chavão marxista de que "a religião é o ópio do povo", mas é preciso que as instituições religiosas percebam os limites dos seus templos, que reconheçam que nosso país é diverso: possui pessoas de inúmeros credos e até de nenhuma crença. A decisão do ministro Marco Aurélio de negar a participação de grupos religiosos no plenário do STF durante o julgamento foi, a meu ver, muito sábia. Plenário não é púlpito. Neste sim as religiões devem afirmar seus dogmas e princípios para condenar a prática do aborto (como o fazem, independente da circunstância em que ele ocorre).
Lamentável o argumento de Gilmar Mendes ao condenar essa decisão, considerando-a como "faniquito anti-clerical", sugerindo que, daqui a pouco, talvez tenhamos a "supressão do Natal do nosso calendário". O Natal é uma unanimidade, ministro, inclusive porque alavanca o comércio. Podemos dizer que, por parte dos grupos religiosos, a recusa cega e indiscutível da descriminalização do aborto também é. Portanto, para que chamar ao debate um grupo que não quer debater? Que considera a bandeira da "Defesa da vida" sem questionar o que é vida, de quem é a vida e de que forma e para que ela está sendo "valorizada"?