segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

"O problema são estas biscatinhas..."

A palavra é a única coisa que me resta. Quando o mundo me cutuca, eu tenho que escrever. Mas quando ele esbofeteia, até as palavras fogem. Demora um tempo para digerir realidades tão cruéis e procurar as palavras para falar sobre elas. Mas precisamos falar. O silêncio é a pior coisa. O silêncio é companheiro da morte.
Há alguns anos tenho convivido com G., uma garota de 13 anos. Essa menina sempre me impressionou. Os olhos são de um negro denso e triste. Quando criança me chocava por proferir frases de um ceticismo impróprio para crianças de 8 anos. Foi rejeitada pelas pessoas que a trouxeram ao mundo e que teoricamente a amariam incondicionalmente e a protegeriam de tudo. Mas ao invés disso, foram eles mesmos que fizeram com que G. conhecesse a dor e a violência muito cedo.
Aos 10 anos, precocemente amadurecida, G. já era biologicamente mulher. Já menstruara, já tinha seios, era muito bonita. E aos 11 anos, ela começou a fugir da escola, a passar noites fora de casa. Também foi vista fumando e em companhia de homens. No fundo, penso que G. queria desesperadamente que alguém a percebesse. Quem sabe fazendo tolices? Quem sabe ameaçando ir embora para sempre? Mas só conseguiu mais algumas surras e o veredito, que ouvi dos lábios de pessoas de sua família: "G. se perdeu". Um fato consumado. Eu não me conformava de alguém selar assim o destino de uma criança, de alguém por quem havia tanto ainda para ser feito.
Aos 12 anos, G. engravidou. Agora, aos 13, deu à luz uma menina. Teve muitas complicações no parto por conta de seu corpo não estar ainda preparado para uma gravidez. Passou 10 dias na UTI. Por pouco não morreu. E agora tem uma vida em suas mãos: a pequena H. - o que será delas? eu me pergunto na minha angústia solitária. Quando as visitei no hospital, os olhos de G estavam ainda mais negros, mais densos, um olhar resignado, de quem não espera muito mais da vida.
Eu estava, na semana passada, comentando a história de G. com algumas pessoas. E caímos fatalmente nas estatísticas de meninas grávidas precocemente. E o comentário de umas das pessoas me incomodou muito: "O problema são estas biscatinhas de 10/11 anos que já querem dar nessa idade".
Imediatamente, eu argumentei que a maioria das crianças que manifestam desejo de consumar uma relação sexual adulta, em idade tão precoce, foram crianças erotizadas - ou por serem expostas a cenas de sexo ou vítimas de abuso sexual na infância. Estudos de psicologia afirmam que uma das consequências do abuso ou violência sexual é a hipersexualização das crianças agredidas. Também argumentei que essas meninas, muitas vezes desejadas por adultos, se deixam persuadir pela carência em que vivem: privadas de atenção, autoestima, afeto e carinho, procuram preencher essa lacuna na relação que lhes está sendo oferecida e que, longe de trazer isso, só lhes tirará proveito de seu jovem corpo.  
Mas minha interlocutora não se convenceu. Disse que a realidade não é bem essa. Longe de lhe dirigir uma crítica pessoal, o que faço neste texto é compreender suas opiniões, que creio ser uma visão meio generalizada sobre meninas precoces e seu incorrigível erro de engravidarem antes da hora (como se elas fizessem os filhos sozinhas, como se eles brotassem em seu ventre!).
Vivemos em uma sociedade em que o sexo é estampado na mídia de todas as formas. Longe de um discurso puritano que deseja censurar os meios de comunicação, não penso que o sexo deveria desaparecer como tema, mas penso sobretudo em com ele aparece atualmente. Além de ser banalizada, a sexualidade, sobretudo feminina, é colocada como moeda de troca. Condição de sobrevivência. E estamos falando de algo muito mais velado e perverso do que a prostituição (vista de forma folclórica e tão idealizada em novelas ou minisséries baseadas nas obras de Jorge Amado). Estamos falando de inúmeras novelas, filmes, propagandas em que se coloca o estereótipo da mulher bonita e gostosa, da mulher que consegue o que quer porque é sexy. Em outras palavras, o seu corpo continua sendo comprado, mesmo que ela seja rica, bem educada, que se case - invariavelmente, com um homem rico, bem sucedido, ou ao menos com grandes chances de se tornar assim.
Além disso, no pacote de "como se ensina a ser menina", entra o critério "atrair o macho". Desde crianças, meninas são ensinadas, explícita ou implicitamente, a se vestir, se pentear, se maquiar, se comportar de forma a atrair a atenção do sexo oposto e agradá-lo. Uma análise de alguns brinquedos infantis direcionados às meninas confirmam isso. Cada vez mais cedo, as meninas se parecem mini-mulheres. E nos últimos anos, cada vez mais as roupas para essas crianças (às vezes bem pequenas) se parecem com miniaturas de roupas para mulheres. Não aquelas roupas da minha infância, em que meninos e meninas se pareciam quando vestiam bermudinhas e camisetas, que precisavam acima de tudo ser duráveis e confortáveis, pois eram feitos para crianças que subiam em árvores, jogavam queimada, se ralavam descendo "de bunda" o gramadão da quadra da escola. A gente até colocava vestidos (em dias de festa, principalmente), mas eram vestidos mais parecidos com os das nossas bonecas do que com o da gostosa da novela das nove.
Então eu me pergunto: será que essas "biscatinhas de 10/11 anos" se sexualizaram precocemente sozinhas? Não são elas um produto dessa sociedade que, na falácia da quebra de todos os tabus, não sabe lidar com a sexualidade?
E talvez a pergunta que mais me doa: ao taxá-las de "biscatinhas", não estamos novamente culpabilizando a vítima? Não seria uma variação da perversa ideia de que a mulher abusada é quem provocou o abuso? Não estamos reforçando o que nos foi ensinado desde o mito de Eva: de que a mulher - com seus desejos, sua impureza - é a culpada?
E a derradeira das perguntas: não seria hora de mudar essa mentalidade e, assim, termos um alento de esperança de mudar histórias como a de G.?   

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Planta passeadeira

  "Como dizer ao doutor Czerwenka que já não sei onde os meus pés descansam? Os tijolos do que chamo de casa são de outra matéria, delicada demais, multiplicando endereços no que o tempo fez de mim. Eu não conseguiria dizer ao doutor Czerwenka que depois que a minha raiz foi arrancada eu virei planta passeadeira, sempre a caminho".
(Gislaine Widmer, "Crônica de dores e amores crônicos").


Hoje está uma manhã de maio, embora o calendário diga outubro, sua analfabeta! Não importa. O céu de um azul denso, uniforme, sem nuvens; um vento suave e frio e um sentimento de saudade que se apodera de mim trazem maio aos meus olhos. Que se danem os calendários...
Além disso, li hoje uma bela crônica sobre a saudade, escrita por minha querida Gislaine Widmer, presente sempre embora esteja a léguas e léguas daqui. É que o amor tem destas artimanhas, não só rasga calendários mas atravessa oceanos. Hoje, que amanheço em casa depois de passar uma semana fora, Gislaine me fez pensar em lar, em família, em identidade, e sentir uma satisfação de olhar pela minha janela e reconhecer na paisagem tantas vezes já vista uma beleza ímpar.
Estive em Goiás por sete dias - fora de casa, mas em casa. Estava com a minha família. Com a pequena Ana Luíza - a mais jovem do clã das Júlias, essas mulheres encantadoras, mas fortes e voluntariosas. Com dois anos, Analu sabe dizer não com uma teimosia capaz de enlouquecer os adultos mais pacientes que tentam explicar que ela tem que tomar o remédio, que ela tem que dar a mão para atravessar a rua, que ela precisa tomar banho para dormir. Mas como é encantadora quando inventa. Se transforma em borboleta quando percorre a casa com os braços abertos, ao passar pela cozinha, uma tábua de carne vira um violão e ela toca e canta os hits da escolinha maternal: a dona aranha sobe pela parede, baratinhas vestem saias e o galo, paletó. 
Eu me deliciei nestes dias todos com o riso fácil e a leveza que só uma criança tem, com as comidas maravilhosas que minha mãe faz, com as conversas com minhas irmãs. Estava em casa - porque o lar não é um conjunto de paredes, e sim os ruídos que denunciam a vida em seu ritmo, o cheiro de banho recém-tomado, de comida sendo preparada, a  presença em torno da mesma mesa.
Mas eu senti falta de estar ausente. Do silêncio em que passo os meus dias. Hoje acordei sabendo que não haveria outras vozes no decorrer das horas. Abri as janelas e a luz de maio entrou no meu 15 de outubro. Senti saudade da Analu me acordando de manhã, de minhas irmãs conversando no café, porém, um conforto de estar quieta e contemplar. Do que concluo que a saudade para mim é um estado permanente. E que, assim como Gislaine, eu me sinto uma planta passeadeira.    

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Da incapacidade de não escrever

Ontem estava uma tarde cinza e fui tomar um café com poemas com meu amigo Pedro Marques. Nada mais apropriado a uma tarde em que o tempo parecia estar mais lento. Eu me sentei ao lado das janelas amplas do café e lá fora, o movimento dos carros era incessante, mas as árvores estavam estáticas. O ar parado, os troncos das árvores elevados em alerta, mas sem acenos para mim. Deixei-me ficar simplesmente, queria ficar estática como as árvores, em profundo estado de inércia, mas a poesia veio:

Na janela o refúgio
temor de paredes esmagadoras
procuro a moldura luminosa
braços de árvores
não me acenam
verdes dedos
imaturidade ou esperança
apontam o céu cinza
espectadores da rua
dos passos dos garotos
da corrida dos carros
do sono dos cães.

Depois veio o poeta e a conversa sempre boa sobre literatura, versos e toda a vida neles contida... Em um momento, eu disse "Continuo a escrever pela incapacidade de não fazê-lo". Recentemente, um amigo, Pandiá Mendes, me perguntou como/quando escolhi ser uma escritora. Acho que ao invés de escolher, eu não fui capaz de não ser... Confuso, assim...
E já que este post está pingando confessionalismo (tende paciência comigo, pobres e seletos leitores!), vou colocar mais do meu credo pessoal da poesia. Pedro me disse ontem que a poesia para ele não deve reforçar o mundo como ele é, nem as coisas como são comumente vistas, mas o contrário disso. Então fiquei ontem ruminando como eu penso e vivencio a poesia e cheguei a estas ideias:

1. Poesia não se conforma em ser só texto impresso: quer ganhar a boca, os ares, ser lida e cantada em alto e bom som.
2. Versos foram feitos pra dançar: poesia tem corpo, substância; relaciona-se com o tempo como todos os bailados.
3. Poesia não dorme. Não está no limbo esperando, está no movimento, na vida. A gente é que, às vezes, não consegue ver nem ouvir porque não presta atenção.

São 3, mas estão longe da perfeição cósmica, podem e devem mudar muitas vezes, nesse fervilhar constante que sou/estou...

terça-feira, 17 de julho de 2012

A poesia está viva, apesar dos inimigos de plantão

O inverno resolveu dar as caras em Campinas. Mas nem a chuva, nem o céu cinza, nem o ar gelado desanimaram os destemidos professores, escritores e apaixonados pela literatura e pela educação a irem até a Unicamp para mais um COLE (Congresso de Leitura do Brasil).
Ainda bem que as palavras aquecem o corpo, ainda mais quando literalmente ganham corpo. Hoje tive um momento raro de fruição da poesia. Mais do que voz, a poesia ganhou gesto. Os versos de Jeová Santana se levantaram da página com uma força incrível, através de Eliana Kefalás. Há tempos vivo essa verdade: versos foram feitos para dançar. E quando vi esta mulher mais do que declamando, mas vivendo com todos os músculos a poesia de Jeová Santana, não pude me conter em abraçá-la ao final do sarau e dizer: você realizou meu delírio mais profundo como poeta e professora de literatura. Quem dera um verso meu fosse assim tirado de sua casca de papel e tinta, e nascesse para os ares. Quem dera as escolas nos dessem espaço para fazer com que os alunos fruíssem o texto assim, que tivessem "no seio da palavra literária, o gozo", na expressão da própria Eliana, que hoje lançou seu livro: "Corpo a corpo com o texto na formação do leitor literário".
E foi também um grande prazer reencontrar Jeová Santana, esse escritor sergipano que, depois de boas incursões pela prosa, caiu nos braços da poesia - mas penso eu que ele já flertava com ela há muito tempo, pelo que pude conferir dos poemas do livro "Poemas Passageiros", também lançado hoje. Conheci Jeová por uma destas coincidências felizes. Estava sozinha numa livraria da Avenida Paulista, no lançamento de um livro de outro poeta, Fábio Weintraub. Estava na companhia apenas do livro de Fábio quando Jeová puxou conversa, e eu logo percebi que ele não era um paulistano. Não, não foi o sotaque, foi mesmo o gesto de conversar com um "estranho", tão incomum em uma cidade tão grande e tão apressada. Com a mesma simpatia e generosidade desta conversa, Jeová me enviou seus livros, "A Ossatura" e "Inventário de Ranhuras", meses depois. Agora estou aqui com "Poemas passageiros" em mãos, mas como uma criança que come um doce bem devagar para durar bastante, quero ler bem lentamente, um poema por dia. A poesia desacelera a gente. Pede tempo, atenção aos seus detalhes, seus caprichos. Não se pode ler poesia com pressa. A pressa é inimiga da diversão.
Para quem perdeu o lançamento hoje, vocês ainda tem uma chance de conhecer o poeta antes de que ele volte para as terras nordestinas. No sábado, 21/07, haverá o "lançamento paulistano" do livro, na Livraria da Vila. O convite está aí. Não percam!


Como disse Jeová, declamando seu mais recente poema (ainda inédito), "a poesia não corre risco de vida ou de morte, apesar dos inimigos de plantão". Então vamos ao encontro dela, sempre!

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O fantástico (?) depoimento de Xuxa

Disseram os astrólogos que a posição dos planetas e um eclipse solar trariam a este domingo, 20/05/12, uma energia muito forte e singular. Teria sido isso que o levou a apresentadora Xuxa a revelar em cadeia nacional, depois de décadas, os abusos sexuais que sofrera na infância? Provavelmente, a declaração da ex-rainha dos baixinhos afetou mais os lares brasileiros do que o contexto astrológico, mas, brincadeiras à parte, o episódio levanta discussões sérias. 
A figura da apresentadora é bastante controversa. Suas declarações geram desconfianças: seriam um golpe de marketing para trazer a figura de Xuxa para as manchetes, agora que sua popularidade declina gradativamente? Seria um golpe da imprensa para afastar a opinião pública dos escândalos políticos atuais?
Entre as controvérsias, temos que considerar o caminho longo entre Maria da Graça e Xuxa, talvez cheio de concessões éticas em nome da conquista da fama e do enriquecimento (tão comuns a tantas pessoas, mas nem todas malhadas pela opinião pública). Iniciando sua carreira como modelo, Xuxa estrelou filmes eróticos e posou nua para revistas. Ainda quando se tornara apresentadora do programa infantil "Xou da Xuxa" (para engulhos dos defensores da boa ortografia), permaneceu um grande apelo erótico sobre sua imagem, em figurinos que aliavam shorts curtíssimos a botas de cano longo; em capas de discos em que a apresentadora aparecia numa piscina com pétalas de rosas, com ombros nus, ou em posições que evidenciavam seu traseiro ou suas belas pernas.
Não, longe de mim querer apedrejar uma mulher por usar seu próprio corpo (afinal, ele lhe pertence) para seu usufruto e sustento. Para mim, o que gera desconfiança mesmo é o fato de Xuxa e a TV Globo terem tentado apagar esse passado. Erotizar sutilmente a figura da apresentadora para aumentar a audiência do programa e a venda de discos, tudo bem, mas filme pornô é demais. Porém, apesar dos esforços para fazerem todas as cópias do famigerado "Amor, estranho amor" desaparecerem, todos eles se tornaram inúteis depois que o Youtube e outros sites de compartilhamento de vídeos passaram a existir.
Este filme, sobretudo, causa polêmica porque Xuxa contracena com um menor de idade. Cenas de conteúdo erótico com menores são qualificadas como crime pela lei brasileira. E também como pedofilia (embora essa questão é mais complexa: pode se considerar um garoto de 16 anos, na contemporânea sociedade brasileira urbana, uma criança?). E aí está a grande controvérsia: a "rainha dos baixinhos", benfeitora da infância, protetora das crianças... pedófila? E agora, vítima de abuso sexual na infância e adolescência?
É fácil atirar pedras em alguém com essa biografia, e foi o que mais vi em blogs, sites e redes sociais nesta semana, depois do depoimento de Xuxa ao programa Fantástico, um clássico de domingo nos lares brasileiros. Mas o que mais me chamou a atenção nestes comentários foi a lógica de que ela não tinha qualquer moral para falar de abuso sexual, pois ela havia feito filmes pornográficos. Um pensamento perigoso, que mais uma vez evidencia um valor arraigado em nossa sociedade: a de que a mulher que expõe seu corpo e que o usa como bem entender perde o direito de exigir respeito a ele. Em outras palavras: se ela usa roupas curtas, é "fácil", então qualquer um pode pegar, usar, sem precisar de autorização. Se ela estiver bêbada e embaixo de um edredom, então, nem se fala (só para lembrar outro lamentável episódio envolvendo a rede Globo neste ano...).
Não sou fã de Xuxa e, ao contrário, considero sua atuação na televisão e na cultura brasileira em geral lamentável. Nunca entendi como uma pessoa com voz tão irritante pôde gravar e vender tantos discos. Mas, apesar disso, acho ainda mais lamentável que, diante de uma denúncia pública de abuso sexual (sem entrar no mérito da veracidade ou não deste depoimento, nem de suas supostas intenções mercadológicas ou políticas), pessoas venham a dizer que ela não tem o direito de se sentir violentada por ter sempre sido uma pessoa imoral (lê-se sexualmente apelativa). Quantas atrizes no Brasil não fizeram pornochanchadas entre a década de 70 e 80? Cláudia Raia, Maitê Proença e tantas outras fizeram tais filmes e nem por isso devem ter menos direitos e menos respeito como cidadãs.
Enfim, há de se levar em consideração um aspecto positivo: quando uma pessoa pública, uma celebridade, aparece na televisão denunciando crimes sexuais, isso serve como exemplo para que outras mulheres o façam. Sabemos como essa questão é difícil e delicada: a vergonha e o medo ainda silenciam milhares de mulheres que sofrem violência doméstica todos os dias. Ainda que seja encenação, o depoimento de Xuxa trouxe uma frase relevante: Não contei para o meu pai porque ele não acreditaria em mim (ou algo assim, não lembro da frase ipsis litteris). Quem sabe isso não sirva como um alerta para pais prestarem mais atenção em seus filhos, averiguarem melhor o que ocorre dentro de suas próprias casas? 

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Arthur Azevedo vivinho da silva

Neste fim de semana, 29/04, no Teatro Centro Kennedy, os atores Felipe Hintze, Flora Fernanda e Adriane Hintze estreiam o espetáculo Amor por Anexins, de Arthur Azevedo, sob direção de Adilson Azevedo (recentemente elogiado pela revista Bravo pelo espetáculo 17 vezes Nélson, que esteve em cartaz em São Paulo no mês de março). E é claro que eu tinha que divulgar isso começando o texto com um anexim, ou seja, com um dito ou expressão popular. Mas para além dos efeitos de estilo, o uso do "vivinho da silva" se justifica pelo fato de Arthur Azevedo estar realmente vivo, mais de 100 anos depois do lançamento de suas peças.




Engana-se o leitor se pensa que verá um espetáculo cheirando a poeira, com frases longas e cansativas. O texto de Arthur Azevedo, que viveu entre a segunda metade do século XIX e a primeira década do século XX, é ágil e capta nossa atenção de espectadores do século XXI. Inclusive, podemos afirmar que Arthur Azevedo criou um teatro popular no Rio de Janeiro de seu tempo, para escândalo de intelectuais que defendiam uma dramaturgia literária, isto é, peças com textos maiores e literariamente sofisticados. Paralelamente ao Teatro Municipal, com suas óperas e tragédias, e ao Teatro Ginásio Dramático, com suas comédias realistas de inspiração francesa, a casa de espetáculos Alcazar surgiu, no final do século XIX, para abrigar gêneros populares de teatro, que intercalam cenas curtas, em linguagem simples, a números de canto e dança. A esse teatro renegado pelas elites intelectuais se dedicou Arthur Azevedo, que se tornou célebre por suas operetas e pelo teatro de revista. Esses gêneros alineares, formados por uma sucessão de quadros cênicos, explorando quiproquós e linguagem de duplo sentido, influenciaram muito a formação do nosso humor televisivo (o recém falecido Chico Anísio que o diga!).
Amor por anexins é a primeira peça deste jornalista, dramaturgo e poeta, escrita e encenada pela primeira vez, provavelmente, em 1872, ainda em Recife, antes da vinda do autor ao Rio de Janeiro. A trama apresenta Isaías, um velho homem apaixonado por Inês, viúva, mas ainda jovem e desejosa de contrair segundas núpcias. Entretanto, incomoda-lhe o fato de Isaías falar sempre por anexins: em cada frase que ele fala ou escreve, sempre está presente um provérbio, quando ele não se comunica exclusivamente pela colagem de meia dúzia deles. O apego do personagem aos anexins é tamanho que podemos supor, no título da peça, uma ambiguidade: não apenas o diálogo amoroso através deles, mas o amor do personagem aos próprios anexins, que acabam por se tornar uma marca de sua identidade.
Tal colagem de ditos populares produz efeitos cômicos interessantes, especialmente no contexto da conquista amorosa. Vale a pena conferir, afinal, um texto teatral encenado é muito mais interessante do que lido. Além do que, os leitores estarão prestigiando a vida cultural de nossa cidade. Ouço tantas pessoas reclamarem da precária vida cultural de Campinas (infelizmente, não posso discordar delas), mas vejo mais ainda pessoas que não prestigiam os eventos culturais que ocorrem aqui. O apoio do público da cidade é fundamental para que possamos reverter esse quadro lamentável. Desde já cumprimento os atores pela iniciativa, pela gana de continuar fazendo teatro nessa cidade tão ingrata com seus atores. E vou cumprimentá-los pessoalmente também, é claro!
Espero vocês lá!

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Tentação

Hoje a poesia está me perseguindo. Ronda a minha mesa, sedutoramente, sussurando palavras no meu ouvido:


Tentação

A poesia
só me visita
quando trabalho.

Não lhe interessa chegar
quando preguiçoso permito
o tempo passar sem motivo.

Como amante caprichosa
ela chega sem avisos
e me afasta de obrigações.

Planilhas e pastas
espalham-se discretamente
como senhoras burocráticas.

E não a convido a sentar
em meio a seres tão sisudos:
fujo a seu chamado.

Mas versos se insinuam
entre números e tratados
como sol sereno
de tarde de inverno.
Não resisto mais
nem sequer o terno
a gravata,
o computador
o telefone
Importam mais.

A imagem emoldurada da janela
e a letra manuscrita sobre o papel
tomam o espaço
e derrubam as paredes.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Suporta-se com paciência a cólica da próxima

O dia 12 de abril de 2012 deverá ficar marcado no calendário das conquistas dos direitos das mulheres neste país: ontem, depois de 8 anos em tramitação na justiça, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo deixou de ser considerado como aborto e, portanto, como crime. A decisão obteve 8 votos a favor e 2 votos contra, no STF.
Particularmente, considero muito fácil compreender o quanto essa decisão é justa, já que livra mulheres do que pode ser considerado uma tortura. Os incômodos e sacrifícios de uma gravidez são suportados por uma mulher como sacrifício em prol de outra vida, acalentado pela esperança de ver nascer o filho (quando desejado, obviamente). Exigir de uma mulher que carregue em seu ventre, durante nove meses, com os riscos inerentes de qualquer gravidez, um ser fadado à morte é torturá-la. Como bem disse o ministro Ayres Brito, isso seria martírio, e martírios são voluntários. Não devem ser impostos por lei.
E por falar nas declarações dos ministros ao justificarem seus votos contra ou a favor, chama a atenção uma outra frase do próprio Brito: se os homens engravidassem, a interrupção da gestação de fetos anencéfalos estaria autorizada "desde sempre". Ela me remete ao famoso dito popular "Pimenta nos olhos dos outros é refresco". Ou como diria Brás Cubas, de forma mais sofisticada, "Suporta-se com paciência a cólica do próximo". Neste caso, da próxima: considerando que a maioria dos legisladores são homens, era simples que eles exigissem que as mulheres se sacrificassem e levassem adiante a gestação de um feto praticamente natimorto, o que certamente gera danos emocionais indeléveis. Não doía no corpo deles. Talvez isso também explique, ao lado das crenças androcêntricas e cristãs arraigadas em nossa sociedade, a morosidade que envolve qualquer votação que envolva questões relacionadas à descriminalização do aborto.
Mas os leitores podem alegar que muitas mulheres são contra a decisão do STF; que muitas delas se deslocaram à Brasília para fazer passeatas, protestos, sem falar daquelas que, em suas comunidades e pela internet, fizeram inumeráveis petições públicas e abaixo-assinados em repúdio à possibilidade da "legalização do aborto de anencéfalos" - expressão que por si já expressa a visão destas pessoas sobre o caso. Respeito essas mulheres heroicas, a maioria religiosas, que acham que levar a gravidez até o fim é um destino, é uma missão. Elas têm o direito de pensar e vivenciar isso, bem como defender publicamente suas posturas. Entretanto, como vivemos num Estado laico e democrático (ao menos na teoria), elas não podem, por conta de suas crenças, impedir que outras mulheres tomem uma outra decisão, a fim de pouparem-se, a si e a suas famílias, de um grande sofrimento.
Mas os grupos religiosos não têm voz apenas fora do Congresso Nacional, ou do próprio STF - eles se fazem ouvir dentro destas instituições (e de forma que julgo cada vez mais perigosa). Não reforço o chavão marxista de que "a religião é o ópio do povo", mas é preciso que as instituições religiosas percebam os limites dos seus templos, que reconheçam que nosso país é diverso: possui pessoas de inúmeros credos e até de nenhuma crença. A decisão do ministro Marco Aurélio de negar a participação de grupos religiosos no plenário do STF durante o julgamento foi, a meu ver, muito sábia. Plenário não é púlpito. Neste sim as religiões devem afirmar seus dogmas e princípios para condenar a prática do aborto (como o fazem, independente da circunstância em que ele ocorre).
Lamentável o argumento de Gilmar Mendes ao condenar essa decisão, considerando-a como "faniquito anti-clerical", sugerindo que, daqui a pouco, talvez tenhamos a "supressão do Natal do nosso calendário". O Natal é uma unanimidade, ministro, inclusive porque alavanca o comércio. Podemos dizer que, por parte dos grupos religiosos, a recusa cega e indiscutível da descriminalização do aborto também é. Portanto, para que chamar ao debate um grupo que não quer debater? Que considera a bandeira da "Defesa da vida" sem questionar o que é vida, de quem é a vida e de que forma e para que ela está sendo "valorizada"?

quinta-feira, 8 de março de 2012

Homenagens

Hoje à tarde, quando passei pela portaria do prédio onde moro, o porteiro, Seu Jair, super gente boa, veio me dar um abraço e disse "Parabéns!". E eu respondi, realmente surpresa: "Parabéns por quê, seu Jair?". Ele sorriu e disse: "Porque você é mulher, hoje é o seu dia". E eu, contrariando toda a sua gentileza, respondi: "Que bobagem, seu Jair. Eu nasci assim, então isso é mérito da natureza, e não meu".
Desculpa, seu Jair, o senhor foi muito gentil, e sei que ficou espantado com a minha resposta. Uma vizinha que passava também olhou estranho. Afinal, as mulheres adoram ser elogiadas e ganharem flores nessa data. Mas eu não me derreto, não. O que adianta ganhar flores e elogios (a maioria tão clichês que dá náusea) e não ter a resolução dos velhos problemas? Ainda ganhamos menos do que os homens para exercermos as mesmas funções. Os níveis de violência contra a mulher ainda são chocantes (segundo Organizações Internacionais, de cada 4 mulheres, uma já foi ou será vítima de violência sexual durante sua vida). A distribuição de riqueza entre homens e mulheres, ao redor do mundo, ainda é extremamente desigual. E, dentro dos lares, mulheres acumulam jornadas de trabalho, se desdobram para sustentar e educar os filhos e, se estes se disvirtuam e se tornam pessoas de índole duvidosa, todos se lembram de cobrar a mãe que criou mal, mas dificilmente se lembram do pai que abandonou, ou negligenciou a educação dos filhos.
Desculpem o post meio mal humorado, mas não estou vendo muitos motivos para comemoração.
Mas deixo aqui um poema para as minhas companheiras - poema este que foi compartilhado no facebook por um homem, meu amigo Pedro Marques, que, acredito, é um verdadeiro admirador das mulheres: