sábado, 23 de abril de 2011

Sábado de Aleluia

Continuando o post anterior, que falava das minhas memórias infantis da Semana Santa, o Sábado de Aleluia era também muito especial. Primeiro porque era finalmente o último dia que tínhamos que esperar para comer o ovo de Páscoa - sim, no meu tempo, esperávamos o domingo de Páscoa e não adiantava reclamar que a mãe não deixava comer antes de jeito nenhum. Aliás, vale ressaltar também que era apenas 1 ovo para toda a família, minha mãe dizia que era para aprendermos o valor da partilha. Claro que se misturava a esse intuito pedagógico a necessária economia numa casa pouco abastada com 3 crianças e 3 adultos!
Além de ser o último dia da longa espera, sábado era o dia de malhar o Judas. No meu bairro - bairro Vera Cruz, em Caçapava - fazia-se um Judas com cartolina, crepom, jornal, papéis diversos, que rasgávamos com toda fúria. E, claro, jogávamos tudo para o alto, formando aquela chuva de papel picado. Teve um ano que colaram uma foto do Maluf na cara do Judas, o que para nós crianças era meio indiferente (eu mesma nos meus 7/8 anos não entendi direito), mas animou alguns adultos a irem lá dar uma bofetada também. Ao menos no plano simbólico, a corrupção era derrotada.
Há histórias hilárias sobre a malhação do Judas. Aqui na cidade de Campinas, ouvi de um conhecido (que deve ter passado sua infância num interior mais interior) que em sua cidade, o costume era roubar o Judas de outra rua ou bairro. Então, ele e seus amigos tiveram uma brilhante ideia: para fazer com que seu Judas não fosse roubado, eles encheram o corpo do boneco com bosta, ao invés de fazê-lo com papel ou espuma, como era costume. O resultado, segundo ele, foi um sucesso: os garotos do bairro vizinho chegaram para pegar o Judas, que lhes foi entregue sem resistência. Um dos garotos o pôs nas costas, e, poucos passos depois, parou, sentindo um cheiro estranho, enquanto outro se afastou com cara de nojo e apontou o boneco, de onde começava a escorrer a bosta. Judas foi largado no chão, não tentaram mais roubá-lo e os garotos daquela rua se proclamaram vencedores. E depois malharam seu Judas com bosta e tudo, sem nem se importar com a porcaria que fizeram.
Nessa infância de que me lembro, as datas comemorativas tinham mais graça, porque cada uma tinha seus rituais, suas comidas, suas músicas e seus gestos. Tenho pena de crianças que têm só o coelho da Páscoa e ovos de chocolate. Que ganham um ovo de chocolate da mãe, um da madrinha, um da vizinha, um da tia, outro da avó, mas não têm outras crianças, para brincar, para partilhar o que ganhou. Eu tinha menos coisas, mas tantas pessoas: muitos primos, vizinhos, minhas irmãs; muito riso, reinação, brincadeira e fé. Era lindo acordar no domingo de Páscoa, sob um céu muito azul de outono, e acreditar que Deus realmente estava lá. E ter certeza de que ele também estava na nossa casa quando descobríssemos que a mãe tinha feito lasanha só para nos agradar. Sobrava pouco espaço para o chocolate, na verdade...

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Domingo de Ramos

Algumas coisas não mudam, e é tão bom perceber que nem tudo se esvai na passagem do tempo, que algo permanece. Essa sensação me invade na Semana Santa. Sempre que vou às celebrações, vejo cenas, sinto cheiros e ouço canções que me transportam imediatamente à minha infância em Caçapava, no interior de São Paulo. Sinto-me abraçada pela minha avó, pelas orações que ela me ensinou, murmurando na sua voz firme e enrouquecida as rezas que ela provavelmente aprendeu com sua mãe e avó.
No último domingo, fui à missa do Domingo de Ramos, que eu adorava quando era criança, mais por diversão do que por devoção. Imaginem todas as crianças do bairro portando folhas de palmeira, altamente úteis não apenas para saldar Jesus Cristo, mas para cutucar o colega da frente, fazer cócegas, bagunçar o cabelo daquela menina arrumadinha, cuja mãe a penteava cuidadosamente para as procissões. Nós cantávamos, chacoalhávamos os ramos, cutucávamo-nos e saíamos da Igreja com a alma leve, com aquela leveza que só uma criança pode ter.
E as crianças não mudaram tanto assim, conforme pude perceber no último domingo. Um garoto que estava na minha frente quase enlouqueceu uma menina, de tanto cutucá-la com o ramo. Ao meu lado, uma senhora que tinha colocado ramos de manjericão e outras ervas junto com a folha de palmeira. Minha avó colocava folhas de erva-cidreira e alfavaca, para que fossem benzidas. Segundo ela, o chá bento curava e protegia mais dos males da garganta, dos quais eu padecia com frequência.
O cheiro das ervas ao meu lado, o do incenso que se espalhava pela igreja, os sons de canções tão familiares... Nesses momentos o tempo se torna apenas uma convenção humana.

terça-feira, 12 de abril de 2011

É preciso estar sempre bêbado

Hoje eu me lembrei de uns versos lindos de Baudelaire, que dizem que é preciso estar sempre bêbado. Antes que alguém me convide para entrar nos Alcoólicos Anônimos, esclareço que o poeta se refere a uma embriaguez de outra natureza: sem recusar a possibilidade de se embriagar de vinho, o poeta nos convida a estarmos bêbados de poesia, de virtude, enfim, da vida, da arte. É a única forma de não sentirmos nos ombros o fardo terrível do tempo...
E embriagada me sinto eu, nesta sucessão de dias em que não fiz mais nada além de ler e escrever teatro. Mas à diferença do vinho, as palavras não me entravam pela boca e subiam à cabeça - faziam o movimento inverso, de dentro pra fora, das víceras para os lábios, para os dedos. Eu tentava em vão me concentrar em outras coisas: Malu, minha personagem-sequestradora, me tirava dos afazeres, entrava na frente da televisão me dizendo aquela frase que deveria ser posta para explicar seu tormento, sua angústia mais profunda, seu medo mais agudo.
Meu reencontro com o teatro é como encontrar um amado antigo, que nem a mente nem o corpo conseguiu esquecer por 12 anos.
 

Il faut être toujours ivre.    
Tout est là:                             
c'est l'unique question.
Pour ne pas sentir
l'horrible fardeau du Temps
qui brise vos épaules
et vous penche vers la terre,
il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi?
De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise.
Mais enivrez-vous.


Charles Baudelaire.