terça-feira, 29 de março de 2011

A benção das pequenas coisas

Tem dias que a gente acorda com a certeza da graça. Parece que Deus tocou meus olhos devagar para que eu acordasse. Eu abri a janela e o céu estava cinza, as nuvens faziam a claridade branda para não me cegar momentaneamente. E um ventinho bem fresco, cheirando à chuva, penteou meus cabelos.
A chuva caiu depois, com sua música monotônica, lavando o mundo devagar, sem violência. Na rua, guarda-chuvas coloridos. Abraços e beijos quando saí de casa. Sorriso e bondade onde cheguei.
Acho que os anjos resolveram passear por aqui hoje, estão disfarçados: são aquela senhora que vende rosas na rua (pode até ser Santa Teresinha), o palhaço que dá cambalhotas nos hospitais, arrancando o riso de quem sente dor, o cobrador do ônibus que apesar do trânsito caótico e do nervo ciático dá bom dia sorrindo.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Do amor e suas mazelas

- Mas eu te amo!
As palavras saíram como um vômito. Ela não aguentava mais sentí-las rodando pelo estômago, causando náuseas. Era insuportável demais pensar que se rebaixava tanto, que além de amar aquele homem, esmagando todas as sobras de sua auto-estima, ela ainda tinha a coragem de dizê-lo.
Ele continuou a rodar entre os dedos a caneta, sem encará-la. Assim como se estivesse só, com seus pensamentos. E ela finalmente percebeu que era exatamente isso: ele sempre estivera só.
De repente, ele fez um movimento, como se a percebesse. Como se pela primeira vez fosse encontrá-la. Ela, em pé, segurou nervosamente o dorso da cadeira. Ele parou de rodar a caneta entre os dedos.
Puxou um papel, escreveu uma palavra, levantou-se e saiu.
Ela reclinou-se sobre a mesa para olhar de perto a página branca, em que se lia em letras maiúculas e vermelhas a palavra MAS.

sábado, 12 de março de 2011

Verdade provisória

Era dia do seu aniversário. Um dia estranho, no qual ela se obrigava a parar para pensar na passagem dos anos. Para concluir que era como se eles não passassem. Ela se sentia a mesma, exatamente o bebê que gostava de colo, a menina que gostava de doces, a adolescente que gostava de beijos, embora fosse agora a mulher que sentia algumas amarras aos seus desejos e o peso das rotinas.
Era igual também seu amor aos amigos, aos abraços, aos presentes, aos brindes. Há decadas os recebia das mesmas pessoas, com alegria e gratidão sinceras.
Mas naquele dia, entre tantos telefonemas, sentia falta de um. O mesmo que não viera no ano anterior. Ela olhava a caixa do correio, a caixa de e-mails, procurava uma chamada perdida no celular. Era a esperança de que a ausência do ano anterior tivesse sido um lapso. Um esquecimento perdoável. Embora, antes, ele nunca se esquecesse, mesmo que estivesse do outro lado do mundo.
O dia e a esperança acabaram. Ela se sentou sobre seus pensamentos, lembranças. Em sua memória, apareceram dois amigos que se abraçavam em frente a um portão. Ele disse: "Eu te amo". Ela se sentiu especial e eterna. Ela ainda não sabia que aquela era uma verdade provisória.
Mas agora ela entendia: quando ele disse "eu te amo", queria dizer "o que sou neste momento ama o você de agora". Ele não disse que amava seu vir-a-ser. Ele não disse que amaria a sua continuidade modificada. Como ser em transformação, ele deixou de amá-la.
Conclusão inútil, que não aliviava em sua teimosa mania de continuar amando...

terça-feira, 8 de março de 2011

A Mulher e os Dias

“Ele então pensou com admiração naquela moça que tinha a alma tão ao alcance dela mesma”.
(Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma).

Datas comemorativas, muitas vezes, são meio vazias, e não posso deixar de pensar nisso quando chega o Dia Internacional da Mulher e vejo propagandas institucionais dizendo sempre as mesmas coisas. Longe de mim achar que as mulheres não merecem homenagens. Sim, elas merecem - não por simplesmente terem nascido mulheres,  mas por terem se formado mulheres inconformadas com seu papel secundário num mundo masculino. 
Mas não é propriamente esse inconformismo que é homenageado nas propagandas. Geralmente, nos comerciais de TV, aparecem cenas de mulheres rindo entre amigas, entrando em igrejas vestidas de noiva, cozinhando ou embalando filhos - ou variações dos papeis de amiga, esposa, dona de casa e mãe. Essa é a imagem do ser mulher. Não que isso não faça parte das nossas vidas, mas mulheres também fazem vestibulares, entrevistas de empregos, pesquisas em universidades; também sobem em palanques, são aprovadas em concursos e eleições; são delegadas, juízas, caminhoneiras, mecânicas, engenheiras. Há mulheres de todos os tipos, e isso não inclui só as diferenças entre casar de véu e grinalda ou só no civil, ou apenas ir morar junto com o namorado - como sugere uma recente propaganda de uma loja de departamentos.
As mulheres fizeram muito no último século, no Ocidente: conquistamos direito ao voto, à escolha de nossos maridos, aos estudos, à vida profissional. Foram mudanças difíceis, lentas, fruto de luta daquelas que se opuseram a ser apenas um bibelot - bonito, mas oco e sem utilidade. Todas estas conquistas dão a alguns a impressão de que não há mais opressão às mulheres, que elas são tratadas com igualdade em nossa sociedade.
Basta olhar para além do dia 8 de março para perceber que isso não é verdade. Basta olhar o dia-a-dia, o cotidiano de milhares de mulheres, especialmente fora dos grandes centros urbanos, para ver que a realidade está muito distante desse patamar. É que as mulheres fizeram a revolução apenas da porta para fora.
Dentro dos lares, as coisas mudaram muito pouco. As mulheres continuam sendo as "rainhas do lar", que de fato deveriam ser chamadas de "plebéias do lar" porque trabalham insanamente dentro deles, mesmo que já tenham, assim como seus maridos, vivido um exaustivo dia de trabalho fora de casa. O trabalho doméstico e o cuidado com os filhos continua sendo visto como uma responsabilidade feminina na culltura brasileira, ainda que a mulher tenha também acumulado responsabilidades profissionais e financeiras.
Além disso, as coisas também mudaram muito pouco em relação à sexualidade. A mulher continua não sendo dona de seu corpo. Para que ela seja considerada decente, "honesta", como dizia o nosso antigo código penal, seu corpo precisa pertencer a um só homem. Ela não pode utilizá-lo simplesmente para o seu prazer, descompromissadamente, e continuar a ser tratada com respeito. E o mais curioso disso tudo é que as primeiras pessoas que irão desrespeitar uma mulher, caso ela resolva habitar a única propriedade real de um ser humano nessa vida - seu corpo! -, serão outras mulheres. Serão elas que jogarão os primeiros insultos (já que não se permite mais por lei jogar pedras): oferecida, sirigaita, vagabunda, piranha, puta... (se eu escrever todos os lisonjeiros adjetivos utilizados nesta situação, ficaria horas aqui).
As coisas não mudaram da porta para dentro porque as mulheres se oprimem entre si: continuam defendendo e difundindo ideias e comportamentos que reforçam sua dependência e menor capacidade em relação ao elemento masculino. Elas reforçam, por falta de consciência e reflexão, na maioria das vezes, seus menores direitos à liberdade, ao prazer, à igualdade, à plena realização como ser humano.
Muitas vezes eu já fui criticada por pensar e dizer as coisas que eu estou escrevendo agora. Eu já ouvi em tom muito pejorativo o adjetivo "feminista" dirigido a mim. Eu não gosto de rótulos. O que me considero é uma mulher que analisa o mundo em que vive, em muitos aspectos, inclusive este de que trata este texto. Se isso é ser feminista, obrigada. Mas creio que a imagem da feminista bigoduda, mal amada, fanática, inimiga dos homens é a mais comum. Felizmente, não me considero nada disso. Sou feminina, gosto de rosa, de sapato de salto, de maquiagem, de vestidos, de homens, mas também de livros, de finanças e de discussões políticas.  Será que denegrir a imagem de mulheres que refletem sobre seu lugar no mundo já não é uma forma de opressão das mulheres contra si próprias?
Eu me considero uma mulher que busca sua alma: quero, como a personagem Olga, de Lima Barreto, tê-la ao meu alcance. Para mim, isso significa me conhecer, estar ciente das minhas potencialidades e dos meus desejos, e realizá-los. É isso que eu desejo às mulheres nesse dia 8 de março de 2011, mas também em todos os outros dias: que busquem suas almas e a tenham ao alcance de si mesmas. Daí talvez alguém diga em relação a vocês uma frase de que tanto gosto, de uma canção popular: "Ela é livre e ser livre a faz brilhar". 
Em especial, gostaria de homenagear no fim deste texto algumas mulheres maravilhosas: Júlia (minha finada avó, que teve a coragem de se separar do marido ainda na década de 50!), Helena (minha mãe, que me educou para ser uma mulher independente), Neusa (minha tia, que não deixou que a idade e o julgamento alheio a impedissem de fazer planos de solteira aos 50 anos), Sara (minha irmã, que busca exaustivamente sua própria alma - não é fácil!), Ludmila (filósofa de longos cabelos, "a mulher que caminha sobre a copa das árvores"), Vanessa e Juliana Meirelles (amigas corajosas, inteligentes, donas de suas vidas). E muitas outras mulheres que eu gostaria de citar aqui, mas antes que esse post vire uma Bíblia, é melhor parar...